30.3.06

O ponto

Encafuado no seu cubículo com o guião ante os olhos, o ponto é no teatro mais do que a memória de um actor em dificuldades, ele é a frustração de não o ser. Há naquela leitura entre dentes murmurada, a declamação interior que nenhuma audiência ovacionará. No momento em que, na penumbra densa da sala escura, a heroína sucumbe nos lábios do seu galã, visita-o a agonia corrosiva do não estar, a penúria melancólica do não ser. Todas as noites há nele o profundo beijar através de outro, o íntimo sentir as palmas alheias. Voltando a companhia inteira à boca de cena, num rodopiar incessante ante aplausos que trovejam, há, discretas mas inevitáveis, duas lágrimas incontidas que lhe sulcam a cara, contente pelo que não é, feliz pelo que não foi.

29.3.06

O surgimento da tragédia

Ele há o lendário, que muitos imaginam, o íntimo que ele sente; há também o eterno menino de sua mãe, o velho caduco com que os próximos se irritam. Ele há o mesmo, aquela identidade que o número de identificação simboliza, o diverso que o velho álbum fotográfico vai dando conta. Há também a cissiparidade aquele processo de reprodução sem sexo, conhecido na biologia celular como a fissão binária. No schizosaccharomyces pombe e outras leveduras é assim. Do um surgem muitos. às vezes acontece o mesmo com os sentimentos. De um primeiro mau momento surge a tragédia, num ciclo celular de crescimento exponencial.

23.3.06

Estradas reais

Em 1862 ia-se de comboio de Lisboa a Peniche. Vejam para crer. Era o tempo das estradas reais de primeira classe, hoje o das auto-estradas irreais de segunda.

21.3.06

O dia da poesia

Hoje é o dia mundial da poesia. Registo, prosaico, o facto. Esgotado de estrofes, sem rimas, perdido na métrica, recolho-me ao mundo dos dicionários, como se, retornado à confusão da infância, me esgotasse em busca de significados.

20.3.06

Suspensa, a eternidade

Fosse ao menos a heteronímia, ou um desdobramento de personalidade, fosse, enfim, o caso de duas pessoas que eram uma e não o de uma só pessoa dobrada em duas. Mas, assim, é este turbilhão de vários reclamando-se o espaço de um só corpo e dele alimentando a plural inquietude. Fosse ao menos um peusónimo, um cognome ou uma alcunha; fosse eu, no fundo, apenas o alias de mim. Fosse o mundo outra coisa diversa da que vive na minha cabeça, fosse a minha ilusão uma forma alucinada de viver tranquilamente. Fosse ao menos a possibilidade de nada disto me ter acontecido, nado morto ou abortado, o filho que não se chegou a gerar na mulher que se calhar o enjeitaria. Fosse isto um lamento piegas ou uma conversa de engate. Houvesse nisto a tristeza nimbada de uma lamúria, a lamechice carnuda de uma apetência. Houvesse, fosse, tivesse. Mas não há, nem é, nem tenho. Daqui a umas horas começa a rotina e com ela a linearidade ténue, o unidimensional monótono, a platitude indiferente de uma vida sempre igual.

17.3.06

A vala comum

A solidão é um veneno doce que anestesia lentamente, antes de matar. Mata, embalsamando o corpo e volatilizando a alma. Mirrado de tristeza, diáfano de fantasia, o solitário dá normalmente em poeta. Nos seus livros vai morrendo em episódios. No funeral, tudo que poderia haver, faltou: já não há viúva, os amigos não se aperceberam, os filhos estavam longe, o mundo estava ocupado. Segue-se a vala comum do esquecimento, aí sim, finalmente, a companhia dos outros, mortos prosaicamente.

16.3.06

Uma ferida aberta

Foi a Maria Ondina Braga que, a propósito da descoberta do amor, intuiu que um corpo acordado é uma ferida aberta. Foi assim com a sua personagem, uma interna num reformatório. Desperta e insatisfeita, enervada então de insónias, falava desabrido e melindrava-se com tudo e com nada. Acabou despedida. Devolvida por isso, ao mundo exterior, perguntava-se se no amor dos importantes caberia lá também a mentira e a fraude. Nunca achou a tranquilidade de uma resposta. O livro chama-se «Amor e Morte». É o nome de um dos seus contos, onde numa passagem, se fala num hotel e na paixão de uma mulher por um escritor, não por ser belo ou distante, pois «a beleza gasta-se com a proximidade - mas também por lhe ter purificado as noites».

11.3.06

O corredor verde

A frase pertence à Agustina Bessa-Luís: a indiscrição é uma virtude alfandegária. A curiosidade, penso eu, o oposto defeito. Ao passar a fronteira em que tenho de abrir a mala do eu, opto sempre pelo nada a declarar. Um dia fico sujeito à revista e ao jogo dúbio em que a mesma se traduz. É um risco. Mas entre ele e os formulários, prefiro o contrabando, passando-me, clandestino, dentro da mala de mim.

8.3.06

A ordem inversa

A ideia do tempo futuro como o de um buraco imenso, para dentro de cujo vazio se absorve tudo quanto existe, como se um remoinho que nos aspirasse o sopro vital, eis a minha cosmologia privada, a única que me dá sentido ao que sucede. E sabem porquê? Pela ideia de que o suposto passado, o do tempo antecedente e vivido, já lá está, nesse poço sem fim, sugado como se por boca insaciável. Pensando nisto, como suicida fixado no ponto negro do fim de um poço, concluo ruminadamente uma coisa que é a causa única da minha tranquilidade actual: tudo o que tenho por anterior a mim e de mim precedente, antecipou-se-me na queda. Eu que estou à frente, na linha do tempo, estou atrás no passar da meta, além da qual a vida recomeça, terminando.

4.3.06

A miragem do ser

Não há pensamento mais disseminado entre os lusíadas actuais e os seus antecessores do que o retórico, modo de discorrer mais usual do que o argumentativo. É disto que vive a imprensa, disto mesmo que se alimentam as conversas de café. E estes meus blogs, houvesse neles um mínimo de objectividade, um pouco de racionalidade, algo de lógico, ou ao menos de coerente, e pura e simplesmente não existiam. Assim, a sua existência é o melhor argumento de que existem, a sua ênfase a forma retórica de eles se exibirem. Estão, mas não são: uma simples ilusão de óptica faz com que apareçam, aparentemente.

1.3.06

A escrita

«Existir em escrita». Disse-o Vergílio Ferreira, como uma ânsia esganada. Tornar-se o escritor no seu personagem, os livros na sua biografia, o escrevê-los no modo de a viver. Depois, viver carnalmente em cada leitor, possuindo-lhe as entranhas da alma, assenhoreando-se-lhe dos recantos da alma. Pudesse ser assim e nas esquinas da cidade, cruzando-se anónimos, leitores de um mesmo autor, como se gémeos fossem, reconheciam-se de uma mesma estirpe. Não é viver ficcionadamente, é ficcionar aquilo que há para viver. Desfazer-se em escrita e pela escrita renascer.