21.1.07

O Senhor Eu

Consegui recomeçar a ler. Lentamente. Tenho tantos livros a meio, mas achei preferível ir buscar um que ainda não tivesse iniciado, como se quisesse banhar-me em novidade. Claro que é um livro já relativamente antigo, publicado em Junho de 1978 [como isto para mim foi ontem!], com as memórias de infância do José Gomes Ferreira, o «Coleccionador de Absurdos». Vim aqui dizê-lo, por ter visto lá menção ao «Senhor Eu», assim: «Eu. Exactamente. Aquele que nunca consegui atar à minha imagem, ao que penso de mim - cada vez mais alheio ao que sou e fui. O Senhor Eu». Depois disto, que poderei eu dizer mais aqui?

15.1.07

Uma questão de imagem

Perca tempo e imagine-se como os outros o vêem. Ficará supreendido ante a imagem grotesca, caricatural, deformada, ridícula, da sua pessoa. Sofrerá com isso, pela certa. Apetecer-lhe-á chegar à janela e gritar: parem! Isso é mentira! Essa imagem é uma contrafacção! Abaixo os falsificadores! Só que o problema nem é esse. O problema, como já vem da Idade Média, é o das imagens e do venda de imagens. Hoje, com a sociedade do espectáculo, cada indivíduo tenta passar pelo que não é, vê no outro o que gostava que ele fosse. Nos olhos primeiro e na boca de muitos, somos os recalcamentos, as ambições, as fantasias das suas vidas: heróis à força, vilões por definição, seja o que for que lhes quadre. Perca tempo, imagine-se em pelota no meio da rua, um letreiro ao peito a dizer «eu não sou eu!». Não vale mesmo a pena. Fica constipado e desiludido, sobretudo com os que julga amigos e são sempre os piores algozes. Os melhores serão os que cravarem apenas alfinetes no seu retrato.

7.1.07

A peste

Folheei-o, ontem, ao livro da poesia completa do Anrique Paço d' Arcos de que a Imprensa Nacional deu à estampa agora a segunda edição. Li-as, às breves memórias literárias que escreveu e com as quais os organizadores em boa hora decidiram iniciar o volume. E não é que nelas encontro, na última linha exactamente a mesma frase biblíca que ao findar o dia, li num conto do Borges sobre «a seita dos trinta», a admoestação de Jesus: «deixai que os mortos enterrem os mortos»! Talvez esta frase coincidente seja um repto contra as inúteis pompas funerárias, talvez possa ser o retrato pestífero de um mundo acabado, ao qual, afinal, ninguém sobreviveu. Sentado na cama, embrulhado num cobertor, ouço, longínquo, o latir premonitório de um cão, a estridente sirene das ambulâncias aflitas, da ilusão de vida que é o hospital na rua em frente

3.1.07

Ver para crer

«Eu cri, tu creste, ele creu». É mesmo assim. Custa ouvir, mas é. Em matéria de crença, a fonética do passado no que à terceira pessoa respeita, alinha creu com breu. Claro que cada uma das palavras tem ressonâncias semânticas diversas: no caso do breu, as trevas nocturnas da ocaso da Razão, a urgência de um Diógenes e sua lâmpada, a alumiar-nos os passos. Prefiro o «eu cri». Sempre é um regresso à minha infância, em que crédulo em tudo, via em cada «cri-cri» o grilo da consciência da minha alma de Pinóquio trampolineiro.