24.5.08

O vislumbre,

Consegui ainda dar um salto, como se diz - expressão que torna o ronceiro em pulador - a uma livraria e trouxe de lá, imagine-se porquê, um livro com fragmentos dos pré-socráticos, que valem mais que muitos dos tratados integrais revistos e aumentados de muita filosofia contemporânea. «O vislumbre das coisas ocultas são as que se mostram», disse Anaxágoras, um jónio, amigo de Péricles, que foi julgado por ter dito que o Sol era uma pedra incandescente e não um Deus.
Li o excerto, curto e por isso extenso, e a saber tanta gente dissimulada, que velhacamente nos tributa sorrisos, vi nesse sorriso, em vislumbre, a expressão contida do como se riem ocultamente à gargalhada da nossa triste figura, crédulos ingénuos, pela lisonja atraídos e aos elogios rendidos.

22.5.08

Nascida no Canadá

Hoje Lisboa era um cidade semi-deserta e chuviscosa. Consegui arranjar um lugar para arrumar o carro e outro para me arrumar a mim. Como escrevi hoje sobre coisas do Brasil, houve quem me levasse a sério e perguntasse: «então por cá?». Eu respondi: «vim só comer uma feijoada!». Intrigado o meu interlocutor, já sem saber se os transportes aéreos inter-continentais já são assim tão rápidos, ainda replicou: «com feijão preto?». Mas eu atalhei logo para não gerar equívocos: «não, com camarão!».
E cá estou em casa, agarrado à Vivienne Michel, que no capítulo décimo vai ser atacada por dois rufiões. A vantagem de se ler à força é esta, já sabemos as histórias de cor.

15.5.08

O atrasado

Este é mais um daqueles posts que eu escrevo num dia e ante-dato, talvez porque o tenha pensado ontem, enquanto dormia o pouco que consigo dormir, ou talvez por ficar assim com a tranquilidade de ter a escrita em dia, um texto diário, como os que rezam antes de dormir.
Não sei qual a razão, mas quando assim sucede ponho sempre as 23 horas e 50 e tal minutos, a rondar a meia-noite. Deve ser a minha moralidade a ditar-me que, já que minto no dia, que não me afaste muito da verdade, ao menos nas horas.
Pois hoje de tarde, por ter da andar em mudanças de livros, em trabalho braçal, dei de caras com um Almanaque Bretrand, do ano de 1949, aquele em que nasci.
E - digam-me que eu não tenho de ser mesmo supersticioso ! - eis na página 170 um daqueles provérbios inocentes, pois na altura o «Almanaque», que comemorava aliás 50 anos de vida, era um repositório de inocências virtuosas e de panegíricos moderados: «o homem trabalhador atrasa o relógio para alongar o tempo; o ocioso aborrecido, por sua vez, adianta-o, para o encurtar».
Verdade como punhos! São neste momento 15:49 do dia 16. Boa tarde, minha gente. Vou-me alongar um pouco, que isto de dormir pouco dá sono.

11.5.08

O teatro lírico

Há dias em que uma pessoa se pergunta se vale realmente a pena vir aqui dar conta de si, dos seus pensamentos, dos sentimentos, das opiniões e dos presságios, quando não daqueles personagens fictícios num mundo de seres reais.
A dúvida não tem a ver com o ser lido, porque há por vezes alegria no beco do fala-só; a dúvida nasce precisamente do modo como se é lido. É que neste teatro lírico de heróis, mestres cantores da epopeia dos seus feitos ou dolentes vates dos seus funestos desamores, as fantasias podem tornar-se burlescas.

9.5.08

Lisboa à noite

Esta noite sonhei que tinha ido passear de carro pela Lisboa nocturna, das gatas pingadas e dos cães de fila. Entre carros do lixo e lixo dentro de carros, havia uma cidade em que o vício já nem era feérico. Creio que a meio do sonho, parado num semáforo, dei comigo a pensar que o real cria melhores ilusões. Acordei então. Creio que nesse momento a vida sonhada ria-se de mim, deitando-me a língua de fora.