29.8.06

O dito e o ouvido

A frase vem num livro, em geral sem grande interesse excepto por alguns momentos de ironia. É posta na boca de uma nervosa passageira francesa, em barco de emigrantes, de «compleição desbotada». «Para ela, havia dois tipos de países: os países onde gostamos de poder dizer o que queremos e os países onde gostamos daquilo que nos dizem».

15.8.06

O veneno do desprezo

Se há obra que é a construção de um ser fictício, eis «O Mandarim» do Eça de Queirós. Encontrei-o, numa décima terceira edição, de 1941, com uma belíssima capa encadernada a azul. Não sei que estranho sentimento fez com que soubesse bem lê-lo assim naquele papel já amarelecido pelo tempo. A história aprendia-se no liceu, o gozá-la na idade adulta: tendo morto um mandarim, o anónimo bacaharel, que da espinhela curva fizera carrreira, corcovando-se perante os seus directores, herdou-lhe a considerável fortuna e com isso os sublimes gozos que que até ali lhe estavam vedados. Li-os agora, o que na juventude me passara despercebido: ele, Theodoro, amanuense do Ministério do Reino, que se pungia do desejo irrealizado pela magreza de meios de, ao menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sob o seio fresco de Vénus, ei-lo agora, subitamente anafado de ouro, gradualmente do seio amoroso de Lola, ao vasto seio de Madame Marques e, enfim, arrotando, bestializado, flatulência ricaça, em satisfações de luxo e em regalos de amor, em pleno serralho mussulmano, abandonando-se a delírios abomináveis, em pleno viveiro de fêmeas.
A história acaba mal, como convém a uma história de luxúria com fundo moral. Sentindo-se morrer, Theodoro sente que as flores dos seus aposentos murcham e ninguém as renova. Como todo o que sonha a multiplicação do gozo, regressa ao real envenenado de desprezo pela humanidade e pelo Deus que a criou. Querendo gozar, sentiu-se gozado.

12.8.06

A desistência forçada

Se há livros que não dá vontade de parar de ler é este, o das memórias do José Gomes Ferreira. Já disse para comigo que o tinha terminado, que estavam sublinhadas as partes que mais me vincaram a alma e enrugaram os sentimentos. Mas não me convenço. Ainda agora. Tenho-o aqui comigo, ao livro, aberto naquele página em que fala «nas metas exageradas para me entreter a tecer futuros, enquanto esperava que a morte viesse solucionar o problema com o fechar-me os olhos de desistência forçada». Tenho-o aqui comigo e como se fosse meu, aberto e a meu lado.

10.8.06

Vago e errante

«Já começa a escassear terra para os que vagueiam por essas ruas, disfarçados de vivos», escreveu o José Gomes Ferreira. Copiei a frase num papelinho. Com a minha má caligrafia foi por milagre que consegui recuperar a palavra «vagueiam» para a trazer para aqui. Não é um grande verbo, tem aquela forma adverbial de muitos dos verbos portugueses, que exprimem, numa só voz, a acção e o modo, como se nos portugueses não houvesse outra forma de ser do que sendo.

8.8.06

Os obrigatórios pensadores

Há quem viva do dever e da necessidade de ter todos os dias muitas ideias, imensas opiniões, variadas novidades. Logo ao acordar de uma noite em que mal dormem, é o artigo para o jornal, o comentário para a rádio, o programa na televisão, os mil livros para ler. À volta destas pessoas o mundo gira incessante e os acontecimentos sucedem a ritmo veloz. A exigência de nada lhes escapar deve ser um tormento. Tal como os seguranças ou os apresentadores da TV, imagino-os com um auricular, escondido na orelha, ligados a um ser invisível e todo poderoso, fonte de tudo quanto acontece, espécie de «régie» da total sapiência. São os escravos do saber, para os quais todo o jornal, toda a revista, todos os blogs e cada uma destas coisas, lhes não é estranha, antes local de frequência obrigatória. Depois há os livros, aquelas centenas de gregos que parecem ter escrito toda a filosofia que havia para conhecer e de que a actual não pode ser uma repetição, e há os factos, como no Médio-Oriente de todas as guerras, de que a próxima é sempre uma continuação da anterior. Ninguém lhes perdoaria uma falha de ignorância. Sentado nesta sala ainda fresca de uma casa dormente, antes de o sol subir e com ele o crestar tudo quanto viceja, com o cérebro ainda vazio, sem saber sequer o que se passa ali na rua, tenho pena dessa gente. Actores de uma comédia social, muitos são pagos para repesentarem o papel de inteligentes num mundo de estúpidos. A arrogância é só uma forma de se imporem ao mercado. Daqui a pouco chegam-me os primeiros pelos jornais, para que eu saiba o que pensar.

6.8.06

Figurada projecção

Trouxe-o de Lisboa, porque tinha começado a lê-lo e ando a ver se consigo continuar a leitura. É daqueles livros que se pode ir seguindo, como num passeio, sentando-nos de quando em vez, a descansar. São memórias, do José Gomes Ferreira a que ele chamou «A Memória da Palavra, ou o gosto de falar de mim». O livro, publicado em 1965, atrai pelo inesperado de alguns dos seus recantos. Na página oitenta e cinco, por exemplo, e falo da segunda edição, tirada pela defunta Portugália, vejo a expressão «Cavaleiro do Remorso Perseguidor» e sinto-a, como se olhando para trás, me visse projectado na minha sombra, figuradamente.