30.9.06

Por ninguém

Pela leitura aprende-se que grandes personagens vivem histórias banais, e que as grandes histórias são possíveis de ser vividas por gente banal. Ela vive entre o amor a um e o medo que o outro se apaixone por ela. Mas o amor surge-lhes e com isso um terrível embaraço para ambos. Imaginam-se irmãos, talvez mesmo amigos. Na hora da escolha, aquele que ela ama, leva-a. O outro, fica-se com um minuto de felicidade, a de ler a carta em que ela lhe pede que a não deixe. É assim no pequeno livro de Dostoievski que consegui ler neste dia. São três noites brancas e uma manhã, em São Petersburgo. O personagem é um triste sonhador que «perdeu o talento de saber viver a vida real»: esgota-se numa vida inteira à procura de alguém, apaixonhado sempre, no fundo por ninguém.

23.9.06

Agite antes de usar

Alimento-me de uma pluralidade, seccionando-me em vivências, desdobrando-me em aparências, multiplicando-me em efeitos. No fundo é um simples caleidoscópio, uns cacos de vidro colorido, entre espelhos. O único truque é agitá-los, para que nos devolvam miríficas imagens diferenciadas, de maravilhoso aspecto. Eis, pois, o que tudo isto possibilita e tudo explica, a constante agitação. A prostração nocturna tem nisso uma causa, a diurna encontra nisso uma consequência. O que me vale são os intervalos.

20.9.06

Os erráticos diários

Quem quiser visitar em Vila do Conde a casa vazia onde viveu José Régio, passe por lá nos dias 2, 23 e 24 deste mês. José Régio, que se conhece pelo esterótipo ridículo dos seus Cristos e pelas antiguidades, como se fosse a naflatalina da sua própria traça, e de quem há quem se lembre do «Cântico Negro», por causa do modo como o disse o João Vilarett, é um ser complexo e dúbio, sobretudo dilacerado. Li-lhe, surpreso, os erráticos Diários, naquela edição que Eugénio Lisboa preparou para a Imprensa Nacional. «Eu sou a meus próprios olhos, um doido que por acaso nasceu com juízo», escreveu ele, precisamente em Vila do Conde, no dia 22 de Agosto de 1923.

17.9.06

O perpetrador de imagens

Leio em Borges e é como se não suportasse continuar a ler que «por detrás da despedida trivial estava a infinita separação». Já soube, eu também, o que é uma «vida de ressentimento e a insipdez da decência pobre», já senti «aquele instante de vertigem em que o passado e o presente se confundem». Hoje, amarrado à imagem de mim, resta-me sofrer a danação iconoclasta de não conseguir animá-la. Está morta e «o morrer-se tem de ser o facto mais nulo que pode suceder ao homem».

9.9.06

Verdadeiramente adúltero

Eu assino-o regularmente, recebo-o a tempo e horas, raramente o consigo ler tanto quanto desejaria. Este sábado, ao fazer o balanço do que foi a minha semana, em que a vida profissional devorou as entranhas do meu ser, decidi-me a lê-lo. E vi nele, no TLS, que a prestigiada Bloomsbury editou um livro extraordinário, a biografia de um holandês falsificador de quadros chamado Hans van Meggeren. O seu ponto de máxima glória foi fabricar fictícios quadros de Johannes Vermeer, fazendo-o com a interiorização psicológica de ser o próprio, pintando o quadro que o Mestre apenas não pudera pintar. A história deve ser hipnótica, mas o ponto mais tocante tem a ver com o paradoxo do real inacreditável. Quando a Segunda Guerra terminou van Meegeren foi preso, acusado de colaboracionista: um quadro seu fora encontrado entre o espólio apanhado a Hermann Göring, o Reichsmarschall do III Reich . Os Aliados pensaram que se tratava de um tesouro nacional que Meegeren vendera aos nazis. Na verdade, o quadro era falso. Acusado criminalmente, só lhe restava dizer, ao menos uma vez na vida, a verdade. Declarou que o pintara em 1942. Ninguém acreditou. O quadro chamava-se ironicamente «Cristo e a Mulher Apanhados em Adultério». Ninguém acreditou. De facto, há vidas que não dá para acreditar. A vantagem de se mentir quando, vivendo dúplices, somos sempre o outro, é que as pessoas preferem-nos assim.

7.9.06

E que repousem em paz

Eu deveria estar a dormir, porque à noite estou cansado do dia, ou deveria estar a trabalhar na minha profissão, para me cansar também das noites, ou deveria estar a fazer nada para me cansar de vez, sem ter sequer motivo. Mas não consigo. Estou a ler. Consegui acabar a primeira parte dos «Cadernos do Subterrâneo» do Dostoiévski. Leio devagar, porque me cansam os sentimentos que me ocorrem com a leitura. «Todo o homem honrado do nosso tempo é e deve ser um cobarde e um escravo». Não fosse isso, já eu me tinha liberto para aquela «inércia consciente» do eterno descanso, o momento da eternidade, em que o tempo se suspende e uma pessoa fica então definitivamente amarrada ao que passou.

2.9.06

Um direito fundamental

Encontrei o meu caminho, ainda por cima um caminho de legalidade, justificado pelo Direito. Li-o nos «Cadernos do Subterrâneo» de Fiodor Dostoiévski, que continuo a ler, pausadamente deliciado: «ter direito a desejar para si até o extremamente estúpido e não estar limitado pela obrigação de desejar apenas coisas inteligentes». Uma pessoa anda na Faculdade cinco anos e mais de trinta pelos tribunais e nunca tinha aprendido uma coisa destas! Um princípio destes deveria vir na Constituição, logo como artigo primeiro. Chamar-se-ia o direito a ser feliz.