23.2.08

Variações em Inês

Numa resposta de graciosa inteligência, Inês Pedrosa perguntada por um jornal quanto ao seu estado civil respondeu «variável». Com a conforto de me transfigurar de leitor a ser respondente vou procurá-la em tudo o que escreveu e sei que são vários livros. Faço assim quando gosto «invariavelmente».

15.2.08

O ritmo aconchegante

Carapaus, sim, carapaus mesmo, dois, grandes, frescos, grelhados, salada com pimentos e sem alface, batatas se quiser, talvez azeite, ajuda se for preciso, e cebola em rodelas, o sal tempera, vem à parte, como gostar. Vinho em jarro, beba tinto, ainda há e uma fatia de broa, a sopa não é de nabiças, não senhor, são nabos mesmo e a laranja não vem descascada. No final meu senhor são oito euros e mais dez cêntimos. A sua cara não é estranha, ficam dez, muito obrigado, talvez da televisão, ia jurar, não vai mais um cafézinho?
Talvez hoje ao jantar me tenha associado a qualquer mundo que julga conhecer e a que me julga pertencer inteiramente. Mas hoje, pelo meio dia e meia, sobrava-lhe aquele desconhecido que inesperadamente lhe apareceu, cansado e com vontade de almoçar.
Na mesa ao lado dois factores e um fiel de armazém comentavam umas iscas que se comiam numa tasca de galegos, de porco jurava um, de vaca insistia outro, pela alma do meu falecido pai se eu não me lembro, tanta vez que lá fui, entaladas num papo-seco, um copo de três, a vinte e cinco tostões.
Aos quarenta cinco regressava, ressonando simplicidade, a angústia que a cabeça fabrica e o coração sofre a digerir-se beatífica, «o ritmo aconchegante do pouca-terra», rumo aqui, à noite insone, ao cérebro em eterno movimento, mudando agora de agulhagem pelas transvias do mundo que há para viver.

13.2.08

Fazer de conta

O meu admirável mundo novo é andar com o computador atrás, como os que sacam da algibeira os cadernos Moleskine. Com uma diferença. Alguns desses fazem-no por petulância, porque na lojita aqui por debaixo de onde eu moro, ao lado da frutaria, há cadernos escolares a oitenta cêntimos, que servem muito bem, menos claro o «chic», para apontar o que eles anotam.
O meu computador é diferente. Vale como instrumento de trabalho, é, como nos antigos operários, a mala das ferramentas, a chave inglesa, a de bocas e a de fendas, a torquez, a verruma, e o formão, a plaina, o nível e para a justa proporção de tudo, o esquadro, o fio-de-prumo, a régua em centímetros e polegadas.
Claro que há também, a mítica mala de executivo, de dentro dela, já a cair em desuso, a indispensável calculadora científica, o filofax, o bloco-notas em papel amarelo e, é evidente, a edição europeia do Wall Street Journal. Nesse aspecto um palmtop joga isso nas velharias do outro século.
Mas não pensem é mal do meu computador! É através dele que eu chego ao ciber-espaço, e dele regresso, é dele que me abeiro quando quero companhia e dele que me escondo quando exijo respeito pela minha solidão.
Claro que às vezes, como ontem, pensei muito, li tanto e não escrevi nada. Uma coisa sucedeu, para além da via ferroviária que é agora parte da minha. Ele pesou-me o dia todo, um pouco no braço, pois é portátil, mais na consciência, porque, ao fim do dia, nem sabia o que tinha feito.
Escrevo hoje, dia 14, com data de ontem, só mesmo para criar a ilusão de que estive cá. Não engano ninguém, nem a mim próprio. É só mesmo para fazer de conta.

10.2.08

Os maus momentos

A princípio as pessoas escreviam cartas, postais, por vezes telegramas. Manuscreviam, emendavam os erros, riscando as palavras, entrelinhando o que tinham esquecido, acrescentando um «em tempo», um «post-scriptum», para complementar uma ideia, rectificar uma expressão. Nesse tempo havia pessoas que passavam a limpo os rascunhos das suas cartas, as que copiavam minuciosamente tudo o que haviam escrito, para ficarem com memória. Era um tempo em que o aguardar pela resposta fazia parte do acto esperançoso de escrever.
Depois, com a informática veio o tempo real, em que a resposta podia surgir segundos depois da escrita, como se a reclamar uma nova resposta. Com a internet, veio o chat e, ao abrir de um computador, temos a fila dos nossos amigos, daqueles com quem trabalhamos, dos familiares que nos escrevem, todos a saber que estamos ali, a reclamar a nossa presença, com as suas perguntas, a sua necessidade de conversar.
É um tempo em que os sentimentos são surpreendidos, as intimidades não podem ser dissimuladas, os recônditos do humano à mercê de serem devassados. É uma época em que o não responder logo abre a porta ao «que se passa?» inquisitivo.
Não estar on line passou a ser um motivo de preocupação, como quem, nos tempos idos, passava por uma casa às escuros e na ausência de luz intuía a morte dos seus habitantes.
E depois somos nós, ansiosos de companhia e desejosos de sermos prestáveis, a imiscuir-nos, quantas vezes sem um «com licença» pela vida dos outros, risonhos quando estão tristes, desesperados quando eles precisavam de estar contentes, palradores quando eles querem a solidão.
Aprende-se sempre à nossa custa o valor do silêncio, como a beleza do abrir de uma carta pensadamente escrita e que espera uma resposta cuidadosamente redigida. Aprende-se, sobretudo, sempre à nossa custa, a trancar-nos por dentro. Sucede às vezes nos maus momentos. Pena é que seja assim.

6.2.08

O jardim da vida

Em 17 de Fevereiro de 2005 num blog que entretanto apaguei como tanta coisa na vida desfiz, escrevi: «Nestas alturas em que está tudo na imprensa atulhado de política eleitoralista, dei comigo, fugido, a ler tranquilamente todas as folhas do «Jornal de Letras», tal como os velhotes com vagar que, nos jardins, lêem dos jornais os anúncios e mais a necrologia. Uma sensação de paz e de tranquilidade invade a alma de uma pessoa, quando uma coisa destas se proporciona, Vem lá, neste último número, um texto de apontamentos auto-biográficos do Jorge Silva Melo, um texto tocado de humanidade, como um jardim soalheiro povoado de pessoas. Vi que ele tem 58 anos, uma idade de referências que me dizem sempre qualquer coisa, talvez роr eu ter 55. Li e reli, tal como um velho num jardim, a escutar de um outro as grandes e pequenas histórias de uma vida. Cheguei ao fim, com a alma a dormitar, contente, "a vida a andar por aí"».
Hoje dou comigo a ter 58 anos de idade, a idade que ele tinha então e, aqui ao lado, com o livro em que condensa essas e tantas outras das suas crónicas, esse «calendário privado mas sazonal».
O livro não tem prefácio, nem preâmbulo, mas tem nota final. Termina com estas palavras magníficas: «vou vivendo, e, feliz, trabalhando. Sobre isso, ainda não sei escrever».
Leio a palavra feliz, como se perguntasse ao velho do lado, entre o trôpego e o sonolento, o que quer isto dizer. O livro chama-se «Século Passado», é um hino à alegria.