26.11.06

O homem invisível em versão para céguinhos

Aquela ideia de que o que se vê não é o que parece ser, eis, numa só expressão, o conceito de o «ser fictício» que dá nome a este local.
Mas não julguem haver nisto um instante de profundidade da epistemologia do tu, onde apenas há um boçal pormenor da ontologia do eu.
A intenção da frase acima e do blog que lhe rouba o nome, não é enganar os leitores para que imaginem, supresos, que, por detrás do que conhecem existe um outro ou, num novo-riquismo heteronímico, muitos outros.
Nada disso: é tão simplesmente, para que percebam, enfim, que para além do que está, nada mais há, porque o que se vê nem sequer é!
Ficamos assim entendidos e se permitem, deixem-me enroscar na minha invisibilidade, porque hoje é domingo e há dias em que um homem sente ganas de desaparecer.

18.11.06

Subtlileza irónica

Há quem não goste do José Gomes Ferreira por causa do primarismo militante em que por vezes, incomodados, o surpreendemos, ele cuja subtileza irónica lhe deveria exigir mais da inteligência. Mas, enfim, teimoso e pertinaz, lá voltei hoje à leitura interrompida do diário a que chamou «Os Dias Comuns». Claro que o Gomes Ferreira não gostava de muita gente, mas teve a delicadeza de numa advertência inicial à obra inscrever para os leitores vindouros: «imprimam sempre esta sentença no princípio de todos os meus diários: Àqueles que ofendo, por ter sido mal informado, peço que me perdoem e continuem a sorrir para a imagem». Sorri-me eu também ao ler isto, como quando li aquela outra parte em que ele confessa que num dedicatória de um livro seu o fez com um «a Fulana, pelo seu talento de leitora»!

4.11.06

A tragédia da vida alheia

Já perto da minha casa, quando a chuva nos fez separar, o meu amigo que é sábio explicava-me, recalcitrante com o português usual, como hoje se abusa do possessivo verbal, sem sentido. O exemplo podia ser o escrever «a sua vida», em vez de «a vida dele». Cheguei a casa com a ideia na cabeça. Claro que há sempre uma densidade filosófica por detrás de cada palavra. Realmente, é despudor dizer-se «a sua vida» falando a alguém quanto a algo que não lhe pertence. E não preciso invocar o Santo Nome de Deus em vão. É uma verdade que os apaixonados conhecem com o coração, sentindo-a, antes de a compreenderem, pensando-a com a cabeça: «a sua vida» perderam-na, ao entregarem-se ao ser da sua paixão. Nalguns casos vivem possuídos, em outros possessos.

1.11.06

A vala comum

Hoje, talvez por ser véspera do dia de finados, lembrei-me do Mozart que foi enterrado num vala comum. Diz a lenda que, por chover muito, nem os amigos chegaram ao cemitério, apenas um cão lhe prestou a honra dos vivos.
O facto tem toda a carga simbólica que a sua vida e obra ainda melhor exprimem.
Sempre me impressionou que todos aqueles que, imbuídos de espiritualismo, frequentemente religioso, declaram a prevalência da alma sobre o corpo, tenham tanta preocupação quanto ao local onde vai ficar, o seu inerte cadáver: ele são jazigos, talhões comprados para sepulturas perpétuas, cremações, enfim, tudo o que traduz, significa e manifesta um afã terráqueo quanto ao corpóreo acidental em contrário com o que dizem pensar quanto ao anímico essencial.
Ora precisamente hoje, inumado no escritório, a trabalhar, morto de cansaço, descobri, depois de pesquisar num intervalo desentorpecente, que parece não ser permitida a vala comum. Mesmo o indigente terá direito a sepultura individual!
Foi uma surpresa mortal, mas pior do que isso, o nem ter afinal a certeza de nada sobre a morte, estando ainda vivo!
É que, julgava eu, que a velha legislação, dispersa pelas empoadas estantes da minha livraria, me tinha facultado um modo infalível de ter sossego depois do «passamento»: conjugando o estatuído na Postura Municipal, publicada em Edital de 14 de Janeiro de 1941, com o disposto na Portaria n.º 9544, de de Junho de 1940, resultava que nos cemitérios «em secções especiais poderão ser estabelecidas sepulturas para inumação gratuita de indigentes» e [§ único deste último diploma] «sobre as suas sepulturas não será permitida a colocação de quaisquer sinais funerários ou revestimentos».
Só que o afã legislativo nem os mortos deixou em sossego. Primeiro, foi o Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, a alterar o chamado «Direito mortuário português». Depois foi o Decreto-Lei n.º 206/2001, de 27 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 41/2005 de 18 de Fevereiro de 2005 , e ainda mais a Lei nº 30/2006, de 11 de Julho, isto entre tantos outros.
Enfim, enterrado nestes sete palmos de normas jurídicas, desisto!
Talvez haja na legislação sobre resíduos sólidos alguma salvação para o meu problema.
É que eu não quero sepultura individual, nem sinal de presença! Quando me for embora, que fique a saudade no coração dos que ainda se lembrarem. No mais, se for um cão no cortejo, já me dou por contente. Ao contrário de tantos humanos, o cão, quando nos vê, salta-nos às pernas de alegria, como se a mostrar-nos que, para alguém, somos um momento único, só pelo facto de existir.