1.11.06

A vala comum

Hoje, talvez por ser véspera do dia de finados, lembrei-me do Mozart que foi enterrado num vala comum. Diz a lenda que, por chover muito, nem os amigos chegaram ao cemitério, apenas um cão lhe prestou a honra dos vivos.
O facto tem toda a carga simbólica que a sua vida e obra ainda melhor exprimem.
Sempre me impressionou que todos aqueles que, imbuídos de espiritualismo, frequentemente religioso, declaram a prevalência da alma sobre o corpo, tenham tanta preocupação quanto ao local onde vai ficar, o seu inerte cadáver: ele são jazigos, talhões comprados para sepulturas perpétuas, cremações, enfim, tudo o que traduz, significa e manifesta um afã terráqueo quanto ao corpóreo acidental em contrário com o que dizem pensar quanto ao anímico essencial.
Ora precisamente hoje, inumado no escritório, a trabalhar, morto de cansaço, descobri, depois de pesquisar num intervalo desentorpecente, que parece não ser permitida a vala comum. Mesmo o indigente terá direito a sepultura individual!
Foi uma surpresa mortal, mas pior do que isso, o nem ter afinal a certeza de nada sobre a morte, estando ainda vivo!
É que, julgava eu, que a velha legislação, dispersa pelas empoadas estantes da minha livraria, me tinha facultado um modo infalível de ter sossego depois do «passamento»: conjugando o estatuído na Postura Municipal, publicada em Edital de 14 de Janeiro de 1941, com o disposto na Portaria n.º 9544, de de Junho de 1940, resultava que nos cemitérios «em secções especiais poderão ser estabelecidas sepulturas para inumação gratuita de indigentes» e [§ único deste último diploma] «sobre as suas sepulturas não será permitida a colocação de quaisquer sinais funerários ou revestimentos».
Só que o afã legislativo nem os mortos deixou em sossego. Primeiro, foi o Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, a alterar o chamado «Direito mortuário português». Depois foi o Decreto-Lei n.º 206/2001, de 27 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 41/2005 de 18 de Fevereiro de 2005 , e ainda mais a Lei nº 30/2006, de 11 de Julho, isto entre tantos outros.
Enfim, enterrado nestes sete palmos de normas jurídicas, desisto!
Talvez haja na legislação sobre resíduos sólidos alguma salvação para o meu problema.
É que eu não quero sepultura individual, nem sinal de presença! Quando me for embora, que fique a saudade no coração dos que ainda se lembrarem. No mais, se for um cão no cortejo, já me dou por contente. Ao contrário de tantos humanos, o cão, quando nos vê, salta-nos às pernas de alegria, como se a mostrar-nos que, para alguém, somos um momento único, só pelo facto de existir.