E, no entanto, reflectido no que daqui vejo, não me reconheço na animosa criatura que me permitiu chegar até aqui. Houve, por certo, nalguma energia vital anterior, o que alimentou o vivido e o sofrido, o ter saído de casa sem vontade, o ter partilhado sujos momentos com quem ninguém o devia. Tudo isso, porém, como uma hera fincada num muro, esboroando-lhe o reboco e carcomendo-lhe a cor, é uma memória difusa, como aqueles álbuns de fotografias dos mortos, que nos gangrenam as estantes e escondemos em gavetas. Um dia, a pedido ou a propósito, mostramo-los, mortos todos definitivamente, abatidos ao efectivo da vida, inúteis até para o que temos para contar. Para alguém, naquele tempo, aqueles corpos e aquelas almas, foram um motivo de muito ou um pretexto de mais. Hoje, amarelecida a imagem do que deles sobeja, são o virar preguiçoso de uma folha, um nada numa tarde maçadora de domingo, visitas em casa, pela hora do chá.