11.2.06

O virar de uma folha

E, no entanto, reflectido no que daqui vejo, não me reconheço na animosa criatura que me permitiu chegar até aqui. Houve, por certo, nalguma energia vital anterior, o que alimentou o vivido e o sofrido, o ter saído de casa sem vontade, o ter partilhado sujos momentos com quem ninguém o devia. Tudo isso, porém, como uma hera fincada num muro, esboroando-lhe o reboco e carcomendo-lhe a cor, é uma memória difusa, como aqueles álbuns de fotografias dos mortos, que nos gangrenam as estantes e escondemos em gavetas. Um dia, a pedido ou a propósito, mostramo-los, mortos todos definitivamente, abatidos ao efectivo da vida, inúteis até para o que temos para contar. Para alguém, naquele tempo, aqueles corpos e aquelas almas, foram um motivo de muito ou um pretexto de mais. Hoje, amarelecida a imagem do que deles sobeja, são o virar preguiçoso de uma folha, um nada numa tarde maçadora de domingo, visitas em casa, pela hora do chá.