25.12.07

A hora propícia

«As pessoas que eu admiro são aquelas que nunca acabam». A frase é do José de Almada Negreiros. Lembrei-me dele porque esta manhã acordei com os sinos da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, da qual ele desenhou os vitrais, a tocarem, trazendo-me à superfície do despertar um mundo iluminado. Já ontem à noite eles convocaram os fiéis para a Missa do Galo. Nunca antes, embalando a minha dormência, me pareceram terem ecoado tão longe e tão profundamente, no silêncio do Natal.
Almada, que no dizer do professor Pardal Monteiro, foi o mais arquitecto dos pintores portugueses, disse da alegria que ela é «o prémio dos longos dias sem fim: é aquela hora propícia aos que a souberam esperar»! Eis, pois, um Bom Natal, para vós, habitantes da eternidade.

11.12.07

Uma vida, um sorriso

No lugar onde eu nasci havia um dentista que se chamava ou era alcunhado como o Ganchas. Nome estranho, personagem invulgar. O modesto consultório era um tabique forrado a cautelas de lotaria, vestígios de tão má sorte como a perda dos molares ou um dente do siso nascido já apodrecido, a ter de ser rachado a golpes de escopro, às marteladas.
No meio da saleta assim improvisada, a cadeira, como a de barbeiro, só que dentes em vez de cabelos arrancados ali e à força de torquez.
Mas a maquineta que ainda hoje ressoa nos interstícios das minhas memórias mais recônditas daquele local torcionário, é a broca, inferno moedor movido a pedal, roda ao cimo, accionada pelo tape-tape da bota do Ganchas.
O Ganchas, por desgraça ou fatalidade era coxo e assim, na sua fúria de fazer rodar o engenho e, através dele, aquele ferro esburacador com o qual minerava túneis na dentição alheia, projectava de cada cárie uma chuva de esquírolas lascadas, de quando em vez, falhado o gesto, pedaços sanguinolentos de gengiva abrasada.
Cuspia-se, enfim, num escarrador nojento, o asco por tudo aquilo estar a acontecer, como se um filho perdido em golfadas de dor, sonhado o sorriso alvo da sua vida, no sórdido lugar da sua morte.

6.12.07

Velhas histórias

Nascido em Angola foi em Viseu que cresceram as minhas raízes. Foi lá que a adolescência me surpreendeu. Foi lá que encontrei hoje família, memórias, velhas histórias, fotografias que o tempo amareleceu. Há em Fundo de Vila, Castendo, várias ruas com o nome de Barreiros. São os que antes de mim por aqui passaram. Ontem passearam pela minha memória. Estão todos mortos esses meus antepassados. Fizemo-los reviver. Obrigado a quem o permitiu! Regressei a Lisboa menos só.