11.12.07

Uma vida, um sorriso

No lugar onde eu nasci havia um dentista que se chamava ou era alcunhado como o Ganchas. Nome estranho, personagem invulgar. O modesto consultório era um tabique forrado a cautelas de lotaria, vestígios de tão má sorte como a perda dos molares ou um dente do siso nascido já apodrecido, a ter de ser rachado a golpes de escopro, às marteladas.
No meio da saleta assim improvisada, a cadeira, como a de barbeiro, só que dentes em vez de cabelos arrancados ali e à força de torquez.
Mas a maquineta que ainda hoje ressoa nos interstícios das minhas memórias mais recônditas daquele local torcionário, é a broca, inferno moedor movido a pedal, roda ao cimo, accionada pelo tape-tape da bota do Ganchas.
O Ganchas, por desgraça ou fatalidade era coxo e assim, na sua fúria de fazer rodar o engenho e, através dele, aquele ferro esburacador com o qual minerava túneis na dentição alheia, projectava de cada cárie uma chuva de esquírolas lascadas, de quando em vez, falhado o gesto, pedaços sanguinolentos de gengiva abrasada.
Cuspia-se, enfim, num escarrador nojento, o asco por tudo aquilo estar a acontecer, como se um filho perdido em golfadas de dor, sonhado o sorriso alvo da sua vida, no sórdido lugar da sua morte.