26.5.06

Sentimentos verdadeiros

As pessoas mentem. Mas pior do que isso as pessoas mentem-se. Preferem conviver com o que não é, e a saberem. Um dia vêem-nos dizer que se descobriram. Às vezes é uma vocação, outras um vício. Houve um que deu em padre, outro mudou de sexo. Nesse dia julgam-se verdadeiros Funesta ilusão. Mudaram foi de mentira. Falando do passado, convencem-se de que era um equívoco. Houve um que abjurou Deus, outro matou-se, afogando as lembranças, os remorsos a corroer-lhe as entranhas.

22.5.06

O registo dos pecados

«A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me». Machado de Assis escreveu isto num conto a que chamou «A Sereníssima República». O personagem descobriu a linguagem aracneida, parte do modo fónico de os insectos se exprimirem. Acompanhado de um livro anotava tudo. Ante isso, as aranhas «cuidaram que o livro era o registo dos seus pecados e fortaleceram-se ainda mais na prática das virtudes».

11.5.06

O redondel da vida

Vestia-se de toureiro e plantava-se bêbado à esquina de uma taberna, fazendo vénias, como se por passos de capa, num volteio demencial de dentes ratados e barba por fazer. Um domingo foi colhido. Morreu na arena de uma vida encenada, a aldeia indiferente, recolhida à sombra de suas casas. Um automóvel, desgovernado, um estrondo, e terminara-lhe, enfim, a faena. O jornal dedicou-lhe duas linhas bocejantes. O touro imaginário, a cuja morte se dedicara antecipou-se-lhe, num momento de distracção. Um fio de sangue entranhou-se na cal da parede em que se esmagou. É tudo quanto resta.

7.5.06

Cálculo de densidades

Eu não sou a voz passiva de mim próprio, mas um ser condicional. O fictício não é o que se vê, é precisamente o que não se adivinha. O mais é pura aparência. Claro que existe uma substância, densa, pesada. Para muitos isso seria a vida.