7.4.06

O tampo da realidade

Há pouco mais de um ano deixei no blog «A Revolta das Palavras» que entretanto apaguei [e de que este é uma segunda série], esta prosa, que agora ali fui buscar, como os cães que enterram ossos que hão-de alimentá-los em momentos de fome: «Atirei-me ontem a ler о Ruben A., e dele, as «Páginas» e destas, о volume II, por me parecer que me daria embalagem para ler о resto, que ainda é muito. Ruben reconstruiu a gramática portuguesa e criou uma maneira esplendorosa de comunicar sentimentos. 0 livro é um carrossel estonteante de sensações. Prenuncia-se ali о estrondo final da sua obra póstuma, о «Kaos». Nalgumas coisas, о tempo ultrapassou-o. Ele achava, por exemplo, que «Portugal é um país muito sério» onde «dificilmente um professor universitário aceita cocktails com mulheres pintadas» e nisso, já lá vai esse tempo, se é que о houve, em que isso seria assim. Mas uma continua actual, a sua arte de dizer. Aquela da «vingança do vermelho [que] fazia cócegas aos mais verdes», a propósito do chefe da estação ferroviária onde о comboio é о eterno retardatário, emparelha com tantas outras que, quem tiver о habito de sublinhar a lápis о que lê, que se muna de um bom apára-lápis, que vai ter muito que afiar». Viajei com Ruben, pelo corta-mato da vida. Como se na «caminheta aos soluços de subida e loucuras de descida», cruzei-me com as «mulheres com capoeiras a cabeça» e conclui também que «os homens tão preocupados pela quilometragem transformaram-se em pulgas dareia» [sic dareia]. A sua literatura é a do absurdo por ser real. Continuo a ler e tal como ele «sentado no tampo da realidade para pensar». Não e que seja um excelente local, mas pode ser um excelente momento».