4.5.09

O grito

Há vidas escravizantes: são aquelas que, por serem isso, roubam o tempo em que se poderia ser outra coisa. Mas há vidas que são elas próprias a escravatura: são aquelas em que, ao sermos essa outra coisa, é como se deixássemos de viver.
Uma pessoa tem uma profissão e não tem tempo para ler: os amigos compreendem e talvez lastimem. Uma pessoa tem uma profissão e lê um livro: os amigos não compreendem, preocupados, como é possível estarmos a descurar as obrigações.
É este o triste destino da cultura para os que não vivem da cultura: ou é um desperdício de tempo pelo qual nos censuram, como a um perdulário o excesso, ou uma perda de tempo pela qual nos criticam, como a um pobretanas a preguiça.
Sente-se às vezes pudor ao dizer «acabei de ler este livro». Mas, para se ser verdadeiro, não há menos ganas de gritar, em certos dias de raiva, na Praça da Incompreensão, para que ouçam mesmo os que não falam: «acabei de ler a Biblioteca de Alexandria. Há cinco minutos. Em Braille. Eu seja ceguinho!».