Se há obra que é a construção de um ser fictício, eis «O Mandarim» do Eça de Queirós. Encontrei-o, numa décima terceira edição, de 1941, com uma belíssima capa encadernada a azul. Não sei que estranho sentimento fez com que soubesse bem lê-lo assim naquele papel já amarelecido pelo tempo. A história aprendia-se no liceu, o gozá-la na idade adulta: tendo morto um mandarim, o anónimo bacaharel, que da espinhela curva fizera carrreira, corcovando-se perante os seus directores, herdou-lhe a considerável fortuna e com isso os sublimes gozos que que até ali lhe estavam vedados. Li-os agora, o que na juventude me passara despercebido: ele, Theodoro, amanuense do Ministério do Reino, que se pungia do desejo irrealizado pela magreza de meios de, ao menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sob o seio fresco de Vénus, ei-lo agora, subitamente anafado de ouro, gradualmente do seio amoroso de Lola, ao vasto seio de Madame Marques e, enfim, arrotando, bestializado, flatulência ricaça, em satisfações de luxo e em regalos de amor, em pleno serralho mussulmano, abandonando-se a delírios abomináveis, em pleno viveiro de fêmeas.
A história acaba mal, como convém a uma história de luxúria com fundo moral. Sentindo-se morrer, Theodoro sente que as flores dos seus aposentos murcham e ninguém as renova. Como todo o que sonha a multiplicação do gozo, regressa ao real envenenado de desprezo pela humanidade e pelo Deus que a criou. Querendo gozar, sentiu-se gozado.