31.12.14

O tempo e o sussurro

Acordei rompante de alegria e ronronante de preguiça. E estava frio, muito frio. E diz o calendário que acaba o ano e na rua, ao Sol, os humanos locomovem-se para estarem em outro lugar neste dia esta noite, muitos humanos mesmo e motorizados pelo ruído que me chega, sibilante, ao quarto provindo, pelas ténues janelas, da rua em frente.
E aninho-me no aconchego de mim que é forma que há de nos darmos o macio mimo do conforto.
Há no tempo a linearidade superficial que encerra anos ao mudar o dia pelo passar da hora. É por isso que existe a meia-noite do dia trinta e um Dezembro e o próximo ano terminará em cinco e somará oito. Mas existe no tempo a profundidade densa a que nem pelas sensações se chega mas pelo convocar de todos os sentimentos. O tempo subterrâneo que não se mede, contínuo, infraccionável.
Protegido agora da dor porque no interior do círculo mágico que a giz desenhei na minha vida, concito-os, sim, todos os demónios da adversidade, da decadência, da incapacidade, do escárnio. Nenhum se atreve, em nenhum espelho se reflecte o seu horror.
Acordei porque o dia começa e a Natureza murmura do prazer o sussurro.

6.3.14

A existência impensada

Este blog nasceu porque ao ser aparente subjaz o outro e o evidente não é o real. 
Pode ver-se nisso a máscara, como no teatro a "persona", ou a pluralidade do ente consigo mesmo, que é uma forma de se terminar esgotado no intervalo da própria incompreensão, como se, olhado ao espelho, alguém se sentisse irreconhecível.
Há, evidentemente, neste navegar incerto entre baixios e escarpados, a eventualidade de na irrequietude se encontrar forma de renascimento e reencontro, sobretudo de ilusão de vitalidade. O fazer confunde-se com o existir.
Voltei aqui. Este mês chego aos sessenta e cinco anos de existência. Penso nisso sem melancolia. É essa a verdadeira essência de tudo quanto há: existir sem que nisso pense. Se assim não fosse seríamos diversos da Natureza, à mercê da nossa ideia e daquela que os outros formam, amável que seja.

12.4.13

A Rosa é sem porquê

Nasce-se, solto do ventre de que fizemos parte, e vive-se em busca da reintegração. É-se o animal social porque julgamos que os outros nos preenchem a incompletude do Ser, fazendo-nos companhia na semelhança. 
Mas não só de pão vive o Homem. E o apelo da essência torna-se incómodo para os que sabem ler as vísceras simbólicas do esventramento que é o oferecermo-nos ao Tempo, angústia para os que pressentem o acanhamento do Espaço. Progressivo, inexorável mesmo quando circular.
É mais fácil uma Igreja quando provém dos que nos antecederam,a religião dos nossos maiores. Mesmo que com frouxa aderência. Sobretudo quando garante o Paraíso ante o vale de lágrimas. É muito difícil quando nos questionamos a verdade íntima dessa amor unitivo com uma Fé. E se perde a esperança.
Depois, são todos os caminhos possíveis em que se buscam nos arcanos da Tradição a lápida oculta de uma transcendência. Até que um dia há a náusea de sentirmos da profanização o cheiro.
Nocturno, o Homem busca na avidez da carne o êxtase. Na privação confunde-se, alucinado, com a aparência da Rosa mística. A Rosa sem porquê.

29.3.13

Boa Páscoa!

Nenhum outro dos espaços onde escrevo poderia acolher o que a seguir digo. São todos temáticos, e um só, que tem o meu nome, é pessoal; mas esse acabou por se tornar o relato do que vivi e vi viver e assim o digo talvez por pudor em chamá-lo auto-biográfico.
Escrevo sobre a intimidade de um credo a que se possa chamar religioso. 
Fui baptizado sem ter consciência de que isso me estava a acontecer, confirmei os votos pelo Crisma, com uma vaga ideia do que isso significava. Tudo isso aconteceu, como a tantos, porque sim.
A religião, na verdadeira essência de uma espiritualidade, surgiu-me porque fui educado cerca de três anos ou pouco mais num colégio de padres, em Malanje. Eram missionários e isso marca toda a diferença. Já li quem revele não ter gratas recordações daquele local. Para mim marcou-me. O culto da simplicidade devo-o àqueles meus professores, arautos do esplendor de uma Fé que nunca alcancei, e a uns jovens bascos que ali chegaram, vibrantes de entusiasmo, em verdadeira eucaristia com todos nós, endiabrados miúdos carregados de vivacidade carnal mas em ânsia de uma causa que nos sagrasse.
O embate com uma religião que detestei deu-se ao ter chegado à adolescência. A ideia do padre com brilhantina no cabelo e óculos escuros à moda, o padre insidioso junto das raparigas, o padre do faz o que te digo não o que me vires fazer, o frade glutão, o bispo autoritário, tudo isso surgiu então. Isso e o padre que não tinha outra resposta para as angústias teológicas de um jovem em formação que não fosse o adverti-lo de que andava em «más companhias e piores leituras»; o padre que recusou a oração fúnebre ao paroquiano que não pagava côngrua
Depois foi a pobreza litúrgica de muitos dos actos sacros a que assisti, a infantilidade da catequese que via ser ministrada, mescla de dogmas incompreensíveis mas proclamados como artigo de fé, sob a caução da autoritária infabilidade papal ou sob a ameaça da danação perpétua, a superstição e a crendice explorada como se de religião tratasse.
A tudo isso, que já não resistia às minhas dúvidas, antes as potenciava, juntou-se o resultado do estudo que empreendi sobre os textos sagrados, espantado pelo Deus mau e vingativo do Antigo Testamento, perplexo pela reserva de masculinidade ao sacerdócio, incapaz de aceitar aquela Igreja que caucionara a Fé ao lado do Império, a cruz e a espada, a matança das cruzadas, o genocídio da ocupação colonial. E tanto mais. Tanto.
Faltava a pompa, a talha dourada, o negócio das indulgências,  a arrogância do púlpito para me abalar de vez a solidez da convicção, agora por senti-la como a Igreja dos ricos e dos poderosos, artífice da caridadezinha bem entendia.
No fim desta longa estrada de amarguras íntimas, dei comigo reduzido ao que o Cristianismo em mim formara: uma moral.
Do ponto de vista da espiritualidade tentei encontrar-me com ela por outra forma e em outros meios. Puro e devastador engano. Também aí a profanização tomara conta do templo.
Daí em diante e até esta Páscoa a ideia de Igreja Católica equivalia aos seus restantes atributos, o ser Apostólica e Romana e em nenhum destes me revia. 
A noção de haver um Estado do Vaticano, com tudo o que isso significa de lógica de poder, tornou-se inaceitável e implodiu quando a sordidez do caso do Banco Ambrosiano veio ao de cima e por último as envolvências do IOR. Além disso, sentia-a como uma igreja de exclusão, mais apta a clamar pela sua superioridade e triunfo sobre todas as outras do que a chegar-nos como uma forma de comunhão com o transcendente como tantas que pelo mundo existem. O proselitismo de muitos dos seus fiéis tornou-se insuportavelmente mandão.
A ideia de um Cristo redentor, apóstolo ou Deus, nunca se apartou, porém, de mim. Nem de quantos fizeram do apostolado missão, mas humanos, tragicamente humanos nas suas almas simples. Foram os oásis de uma religião que lentamente sucumbia como mística e me afligia como obra. Tinham, esses, linha directa com o Além, através da oração silenciosa.
É graças a esses heróis da resistência, apegados a uma ideia primitiva do que é a crença, praticando a caridade, e sacerdotes solitários da esperança da redenção que eu hoje posso, hesitante ainda, saudar a chegada do símbolo que significa o Papa Francisco.
Não sei como com ele conviverão quantos conviveram com o contrário do que ele é. 
Não quero dizer muito, pois seria atrevimento de quem esteve tanto tempo afastado e sente que não conseguirá voltar. Mas não sou capaz de nada dizer. Expectante apenas por causa de tanta desilusão ante a trágica história do Papado, que envergonha qualquer Homem de bem, mas confiante.
Não o digo por causa da sorte de uma Igreja a que só pertenço pela alegada indissolubilidade de um sacramento que não pedi. Digo-o a bem dos que se reclamam no seu íntimo desta longa herança a de um ecumenismo humano, singelo e fraterno: oxalá! 
Boa Páscoa a todos.

2.6.11

A inacabada narrativa

Um dia será um parágrafo de um conto: «E, no entanto, se não tivesse chovido naquele dia, se os pés não tivessem inchado, embotados, peganhentos dentro da meia rota, esmigalhados pelas botas emprestadas, talvez a vida tivesse sido possível e com ela o perpetuar do rancor não saciado. Mas a um homem a quem dói é impossível não magoar». Hoje é apenas um excerto dele. Fui procurá-lo e a tantos outros, a esmo, assim tal como a vida surge, por me ter convencido que escrever é como andar de bicicleta, uma vez aprendido nunca mais se esquecerá. Depois de o ler, pensei que não seria capaz de escrever assim, como esse que escreveu, interrogando-me como teria sido possível tratar-se de mim.
A história ofende, a daquele para quem «a vida que abreviara era já tão desinteressante como a sua e por isso não lhe deu valor».

12.12.10

A conjunção cósmica

Uma qualquer conjunção cósmica fê-lo levantar-se e dirigir-se à minha mesa. Pediu licença. Lembrou-me, ao sentar-se e como quem me pede desculpa, que sou «uma figura pública» e por isso sujeito a ser "conversado". Não encontrei modo de subtil de dizer que talvez sim, nem consegui modo de explicar o facto do meu embaraço conversável. Acrescentou-me que, tal como no teatro grego, eu deveria usar máscara para esconder a minha persona por sobre a outra. Depois falou muito, por uma qualquer conjunção cósmica que o trouxera à minha mesa. Lembrou o resto esquecido do verso do Camões: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, «muda-se o ser». Pediu-me que pensasse nisso. Na mudança do ser pela mudança dos tempos.
Há uma semana eu tinha estado com o meu Afonso a estudar filosofia. Tem 15 anos. Perguntou-me o que era a concepção do mundo. Era o tema do próximo exercício. Tentei, decompondo a palavra alemã "Weltanschauung", que traz os elementos necessários para que se entenda o que é a ideia de cosmovisão. Chegou lá porque dá os primeiros passos no Goethe Institut, e porque tem um pensamento lógico, que o leva a ter sido um excelente aluno em matemática.
Uma qualquer conjunção trouxe-me hoje a cosmovisão. Momentos depois acabei de ler o livro que arrastava. Ganhei coragem e sorri à vizinha da mesa do lado. E disse-lhe bom dia, para ela sorrir também.
Já na rua, chover na rua tornou-se uma forma de saudar a pujança da Natureza e a sua vitalidade, mesmo sem guarda-chuva.

30.9.10

Necrologia prematura

Pedem-me uma biografia e levam com uma necrologia para que os outros sobrevivos, predadores de cadáver, não inventem a lenda do que não foi. A morte é a interrupção do presente e a condenação inexorável de um indivíduo ao seu passado. Estátua de sal, nega-se-lhe o futuro. O tempo é uma ficção. Como o meu pai era mais velho do que o meu avô, o meu filho mais novo, que tem quinze anos, é neto de um homem que nasceu há dois séculos. Por isso, cheguei aos 61 com a noção de já ter vivido mais do que haverá para viver. Filho de solicitador, queria ser juiz. Mas ao ter corrido o risco de uma filha em Direito, fiz tudo para o evitar. Em vão. Eis o que mostra quanto a minha felicidade na advocacia é uma ilusão e prova quantos sucessos aparentes escondem fracassos evidentes. No caso, advogando contra uma miúda, perdi. Em suma, não quero ser o que sou nem que haja mais assim. Além disso, nasci em Angola. Não tenho, porém, a nostalgia de África, nem orgulho pelo que vi acontecer à minha terra. Vivi os pavores nocturnos das metralhadoras e das catanas, a fúria raivosa e primitiva. Dizem-me que os cubanos carregaram com o mármore das campas dos meus avós para a sua ilha. Portugal é um gosto adquirido, mas sou mais patriota do que muitos portugueses que se alugariam à Espanha, a troco de uns churros. Herdei a ânsia criadora do meu pai. Fundou um rádio clube, registou-o na frequência dos 7.945 kilociclos por segundo, na banda dos 41 metros. A rádio em onda média, descobri-a já garoto, a frequência modulada, um luxo de adolescente. Gatinhava a mandarem-me calar, para abrirem o microfone: aprendi aí a linguagem do silêncio. O culto do dever e do orgulho revoltoso, herdei-os pela via materna. Comprazia-me ser de alguém que aos oitenta e sete acha, sem vacilar, que «isto só vai é à bomba!». Eu apoio, à minha escala, armazenando petardos. Depois é a ideologia, aquilo que a cabeça fabrica e a sociedade molda. O meu horror ao burguês e ao seu mundo do ter nasceu com o existencialismo. A tragédia do homem como ser defectivo, um amputado em busca ansiosa do que lhe falta, lascando-se no perpétuo movimento que é viver, marca o meu dia e prenuncia o meu fim. Por isso, poucos desejaram, como eu, uma família, e nunca a tive. Produto de zangas sucessivas, a minha prole é uma espécie de cissiparidade, como a que estudávamos nas ciências, no tempo em que a quarta classe era a escola primária, o liceu e a universidade. Por tudo isto, não tenho uma biografia nem uma intimidade que deva ser contada. Tal como o Ruben A., eu sou o outro que era eu. Um dia perdi-me da transcendência, depois desencontrei-me da sociabilidade. Se pudesse mudar o rumo aos acontecimentos começaria por trocar de pele. Não me cansa o mundo como vontade, sim como representação. Estou exilado na Literatura, fiz da ficção casa, da escrita lar, dos leitores família.