Nenhum outro dos espaços onde escrevo poderia acolher o que a seguir digo. São todos temáticos, e um só, que tem o meu nome, é pessoal; mas esse acabou por se tornar o relato do que vivi e vi viver e assim o digo talvez por pudor em chamá-lo auto-biográfico.
Escrevo sobre a intimidade de um credo a que se possa chamar religioso.
Fui baptizado sem ter consciência de que isso me estava a acontecer, confirmei os votos pelo Crisma, com uma vaga ideia do que isso significava. Tudo isso aconteceu, como a tantos, porque sim.
A religião, na verdadeira essência de uma espiritualidade, surgiu-me porque fui educado cerca de três anos ou pouco mais num colégio de padres, em Malanje. Eram missionários e isso marca toda a diferença. Já li quem revele não ter gratas recordações daquele local. Para mim marcou-me. O culto da simplicidade devo-o àqueles meus professores, arautos do esplendor de uma Fé que nunca alcancei, e a uns jovens bascos que ali chegaram, vibrantes de entusiasmo, em verdadeira eucaristia com todos nós, endiabrados miúdos carregados de vivacidade carnal mas em ânsia de uma causa que nos sagrasse.
O embate com uma religião que detestei deu-se ao ter chegado à adolescência. A ideia do padre com brilhantina no cabelo e óculos escuros à moda, o padre insidioso junto das raparigas, o padre do faz o que te digo não o que me vires fazer, o frade glutão, o bispo autoritário, tudo isso surgiu então. Isso e o padre que não tinha outra resposta para as angústias teológicas de um jovem em formação que não fosse o adverti-lo de que andava em «más companhias e piores leituras»; o padre que recusou a oração fúnebre ao paroquiano que não pagava côngrua
Depois foi a pobreza litúrgica de muitos dos actos sacros a que assisti, a infantilidade da catequese que via ser ministrada, mescla de dogmas incompreensíveis mas proclamados como artigo de fé, sob a caução da autoritária infabilidade papal ou sob a ameaça da danação perpétua, a superstição e a crendice explorada como se de religião tratasse.
A tudo isso, que já não resistia às minhas dúvidas, antes as potenciava, juntou-se o resultado do estudo que empreendi sobre os textos sagrados, espantado pelo Deus mau e vingativo do Antigo Testamento, perplexo pela reserva de masculinidade ao sacerdócio, incapaz de aceitar aquela Igreja que caucionara a Fé ao lado do Império, a cruz e a espada, a matança das cruzadas, o genocídio da ocupação colonial. E tanto mais. Tanto.
Faltava a pompa, a talha dourada, o negócio das indulgências, a arrogância do púlpito para me abalar de vez a solidez da convicção, agora por senti-la como a Igreja dos ricos e dos poderosos, artífice da caridadezinha bem entendia.
No fim desta longa estrada de amarguras íntimas, dei comigo reduzido ao que o Cristianismo em mim formara: uma moral.
Do ponto de vista da espiritualidade tentei encontrar-me com ela por outra forma e em outros meios. Puro e devastador engano. Também aí a profanização tomara conta do templo.
Daí em diante e até esta Páscoa a ideia de Igreja Católica equivalia aos seus restantes atributos, o ser Apostólica e Romana e em nenhum destes me revia.
A noção de haver um Estado do Vaticano, com tudo o que isso significa de lógica de poder, tornou-se inaceitável e implodiu quando a sordidez do caso do Banco Ambrosiano veio ao de cima e por último as envolvências do IOR. Além disso, sentia-a como uma igreja de exclusão, mais apta a clamar pela sua superioridade e triunfo sobre todas as outras do que a chegar-nos como uma forma de comunhão com o transcendente como tantas que pelo mundo existem. O proselitismo de muitos dos seus fiéis tornou-se insuportavelmente mandão.
A ideia de um Cristo redentor, apóstolo ou Deus, nunca se apartou, porém, de mim. Nem de quantos fizeram do apostolado missão, mas humanos, tragicamente humanos nas suas almas simples. Foram os oásis de uma religião que lentamente sucumbia como mística e me afligia como obra. Tinham, esses, linha directa com o Além, através da oração silenciosa.
É graças a esses heróis da resistência, apegados a uma ideia primitiva do que é a crença, praticando a caridade, e sacerdotes solitários da esperança da redenção que eu hoje posso, hesitante ainda, saudar a chegada do símbolo que significa o Papa Francisco.
Não sei como com ele conviverão quantos conviveram com o contrário do que ele é.
Não quero dizer muito, pois seria atrevimento de quem esteve tanto tempo afastado e sente que não conseguirá voltar. Mas não sou capaz de nada dizer. Expectante apenas por causa de tanta desilusão ante a trágica história do Papado, que envergonha qualquer Homem de bem, mas confiante.
Não o digo por causa da sorte de uma Igreja a que só pertenço pela alegada indissolubilidade de um sacramento que não pedi. Digo-o a bem dos que se reclamam no seu íntimo desta longa herança a de um ecumenismo humano, singelo e fraterno: oxalá!
Boa Páscoa a todos.