25.3.09

Uma salva de palmas

Preocupado, o médico tentava apurar a extensão da confusão mental que a doença estava a gerar, progredindo agora quase sem controlo. «Que dia da semana é hoje minha senhora?», perguntou, um sorriso luzidio a convidar à resposta. «Não sei», respondeu ela, sem dar tempo a que o tempo ajudasse a desgastada memória. «Sei que estamos em Março e o meu filho faz anos», foi quanto disse. Momentos antes, sentados ambos, mãe e filho, na salinha de espera, lado a lado, o silêncio a pesar entre eles como uma humidade viscosa, saiu-lhe da boca como um lamento: «Sessenta anos, José António, caramba! Parece que foi ontem». Daqui a pouco telefonará, como todas as vezes antes das oito, fazendo a sua melhor voz, tentando que a amabilidade exprima, com o sentimento do momento, os votos de um dia bem passado. «São só os primeiros sessenta anos, deixa lá», dir-lhe-á ele, tentando ser engraçado, o tom de voz a procurar contribuir para uma salva de palmas.

22.3.09

Começar

Acorda-se de madrugada e diz-se: vou começar. Chega, entretanto, uma amiga sonolência, a tomar conta de nós, amaciando-nos os ímpetos. Já mais pelas sete e pouco volta o desejo e a vontade: pelas oito saio para um banho e um passeio, porque faz bem andar a pé. Pelas nove, ainda sem desejo de banho ou vontade de passear, pensa-se: se agora me levantasse estava à abertura das dez no lugar onde costumo ler e tomava, entretanto, o pequeno-almoço. Passam as dez e estamos agora a reconciliar-nos com a vida. Nessa altura já as horas não contam. Tudo isto não é por ser domingo, é só por termos dito ao acordar: vou começar. E recomeça-se.

2.3.09

Uma vida

Uma pessoa vem aqui e escreve que não escreveu nada. Ou diz que não lhe apetece escrever, ou que nada tem para dizer. Os outros, ávidos de interpretação, imaginam logo o vazio. E porque não pode isto ser, afinal, a evidência de uma vida preenchida? Uma vida enfim sem necessidade de palavras, uma vida carregada de vida.