28.12.08

Perpetuum mobile

Houve um tempo em que esta música foi companhia. Repetida, incessante, enleante, uma helicoidal sonora, a hélice acústica de um turbilhão interior, o ronronar reconfortante do adormecer a alma em paz. Houve um tempo em que um programa de rádio eu, anónimo, clandestino, ignorado, abria o microfone e falava, apenas a voz traindo o meu ser inesperado, abria e encerrava sem outro indicativo a não ser esta música. Esta música, precisamente.

27.12.08

Problema de tradução

Tenho vindo a traduzir um livro. Mais devagar do que devia. Há momentos saíu-me esta frase: «Parece-me que embora não esteja contente com o que acontece, está, pelo menos, tranquilo, o que é uma maneira de estar contente com atenuantes». Uma pessoa lê isto e filosofa a sua própria paz, mesmo que seja a de não se entender consigo mesmo.

23.12.08

Bom Natal!

É Natal. Está quase aí o Natal.
Natal para todos, os que não querem Natal e os que fogem do Natal.
Natal para os que julgam que Deus vai nascer e os que acreditam que Deus já está morto.
Natal para os que renovam a esperança num Deus menino e os que já só têm fé num Deus velhinho. O Natal dos sem abrigo da caridade alheia, do afago próximo, do aceno longínquo. Natal de se a carta chegar a tempo, Natal com saudades de casa e esperanças de sair para fora de casa. Natal em que a dor dói mais por ser Natal.
Natal para os que recusam o mistério de um Deus divino por ser crime haver Deus e este mundo paganizado. Natal de um ano de horror de um demónio impune.
Natal sem Deus, para além de qualquer Deus.
Natal para os que sofrem a dor alheia, para os indiferentes com a própria dor.
É Natal. Natal para os que se sentam silenciosos entre a sua família e nos intervalos da sua ruidosa indiferença, porque há jantar. Natal para os que já são avós dos que sempre festejariam ruidosamente o Natal, mesmo que não houvesse jantar.
Natal com árvore, com presépio, Natal sem uma flor sequer, uma luz.
Natal para os que se escondem em silêncio nos intervalos das famílias alheias. Natal dos separadas, dos que já não conseguem ninguém. Natal para os filhos de pai e de mãe e de padrasto e de recém-chegado, Natal para os que repetem tantos Natais quantas as separações.
Natal dos que já não acreditam que seja possível um homem separar-se mais.
Natal carregado de surpresas, prendas, lembranças e guloseimas. Natal com Pai Natal. Natal de uma cornucópia doce de coisas tão boas, que eu já fui pequenino e soube que era assim, com sabor a açucar, o ser Natal.
Natal para quem está de turno, de sentinela, de quarto de vela. Natal com uma garrafa de conhaque, Natal com lágrimas na hora de ser Natal, com a cara feia, Natal a dormir, Natal a olhar para o infinito de nada, Natal na janela, na amurada, no cubículo, na interminável rua. Natal de magoar a felicidade de ser Natal.
Natal para os que foram e já não lembram os que ainda estão. Natal para os que evitam lembrar.
Natal de jantar cedo e acabar tudo antes da hora mágica de mudar o dia.
Natal da meia noite.
Natal com os vizinhos solitários, os amigos despegados, Natal do porque não pois é Natal. Natal de um abraço que dura um dia, o dia de ser Natal.
Natal de ter tido já todos os Natais em que é possível haver Natal, Natal com os meus, com os outros e com os dos outros. Natal a substituir Natal, Natal em vez de Natal.
Natal a tomar de empréstimo, como uma fantasia barata, a máscara de um qualquer Natal.
Ah! mas como no dia seguinte a terra amansa e parece domingo de manhã. As ruas estão sozinhas, pelos cafés esgravatam os que vivem sós e os que fazem de conta, por vergonha, que também tiveram Natal, os que não conseguiram fugir da ideia amarga de que há Natal.
A todos, todos, incluindo os felizes, os de alma pura e sentimentos nobres, os que juntam em torno de si a simplicidade de uma vida que a vida não corrompeu, perpetuando o sorriso das crianças, aos que estão bem e riem e trocam prendas e mimos e beijos, aos que não conheço, aos que nunca me conhecerão, um Bom Natal!

13.12.08

Chove chuva

Acordar e estar tudo a chover. Capacitar-se uma pessoa que vai ser difícil sair de casa sem razão. Horror! Antecipar os pés molhados, uma constipação, uma gripe, uma pneumonia, ficar, enfim, de cama muito tempo, com motivo. Maravilha! Viver na cabeça as duas estações e a preocupação de já não haver quatro. Ter a consciência social das alterações climáticas e sua causa. Ter a consciência individual de não apetecer preocupar com nada.
Acordar e ser sábado. Não ter necessariamente que trabalhar e ter obrigatoriamente que trabalhar. Talvez escrever. A chuva é amiga das ideias de interior, dos pensamentos recolhidos, dos mimos domésticos, do perdoar o mal do espírito pelos bem dos corpos.
Da minha janela vejo quem venha comprar o jornal, fustigado de vento, como se o mundo sem notícias tivesse perdido a capacidade de chover.

11.12.08

Um sentimento na noite

De novo na minha rua o ruído ritmado do carro do lixo. De tarde, em viagem, percebi que a greve tinha sido levantada, embora ameaçasse voltar.
Quando era jovem, residia em Sintra, vivia noites de expectativa vigilante à espera de ouvir o ruído de água nos canos. O abastecimento era intermitente, os cortes de fornecimento frequentes e prolongados.
Lembro-me então como agora o sinto o ruído do regresso de uma coisa boa. Então um gorgorejar e era água, agora pancadas metálicas e secas e é o lixo.
Há muitos modos de um homem se sentir pior. Este é apenas um deles.

9.12.08

Ir ao Nimas

Foi um repente. Acabado o jantar, ei-la, juvenil, a ideia de ir ao cinema. Ir sim, ao cinema aqui perto, como outrora se ia ao de bairro, a apressar o jantar para se chegar a horas. Estuguei o passo, um livro debaixo do braço que não tivera tempo de folhear sequer ao jantar.
Um pouco pitosga, bem menos do que no ver ao perto - deliciosa expressão com que me entendi outro dia com a minha oftalmologista - foram ganhando dimensão e formato e sentido as letras que no Nimas anunciavam o filme. Uma por uma, enfim a frase: «Remodelação».
Fantástico título, o género de película que a minha alma descontente anda mesmo a precisar: Remodelação, isso mesmo!
Só quando vi mesmo em cima é que dei conta daquilo que, vendo ao longe, a minha vista não alcançava: «reabre em 11.12». Um saco de cimento à porta semeava, porém, a dúvida.
Pasmo de alegria. Ao menos reabre! Outro dia na Mexicana o empregado pareceu-me familiar. «Então lá se foi o nosso cinema!». Cruz na porta da Tabacaria! Morreu o Alves! Caramba! Pois era! Conhecia-o do Quarteto. Do falecido Quarteto. O cinema onde não havia lugares marcados, mas onde se marcava presença. «Para a nossa geração foi um símbolo, senhor doutor». «Foi», respondi-lhe, com a anemia de sentimentos dos anos que passam: «um carioca fraco, faz favor».

6.12.08

Disse-mo um passarinho

Talvez espante mas comprei, um após um, os quarenta e cinco volumes das Obras Completas do «Lénine», naquela impressão encadernada tirada pelas Edições do Progresso na então União Soviética. Os meus na versão francesa com apresentação do entretanto amaldiçoado Roger Garaudy.
Os últimos tomos são dedicados às cartas. Lembro-me, curiosamente, menos do teor de O Estado e a Revolução, ou do Que Fazer?, mas recordo-me das cartas que Vladimir Ilitch Oulianov escreveu à família, sobretudo a partir do seu exílio na Sibéria, aonde fazia chegar livros que encomendava, através da irmã, vindos por empréstimo domiciliário da Biblioteca da Ordem dos Advogados em Moscovo.
Numa dessas cartas dava conta de um exercício mental, indispensável para a boa saúde do espírito: tal como na ginástica, nem sempre correr, nem sempre a passo, nem sempre em flexões, também para manter o intelecto em forma, ler, escrever, traduzir, rever, em suma, variar.
Lembrei-me disto hoje que iniciei a tradução de um livro. Ao fim de cinco páginas sem dicionário, lendo a história como ninguém a lê, palavra após palavra, sentindo vontade de a ter escrito, aqui e além para revê-la, cheguei a casa desejoso de um pouco de ar puro, apetecendo uma sesta e com ela o nada fazer. Cruzei-me na vinda com um melro, luzidio, bicando laranjadamente, saltitando, espojando, esvoaçando. Descontadas as asas, estamos iguais.