30.11.08

A contingência

Quantas vezes acontece dizer-se e logo a seguir arrepender-se uma pessoa do que disse? Sucede o mesmo quando se escreve.
Apaguei ontem um post, como em tempos suprimi um blog. Quem tiver notado, faça o favor de deixar o assunto em paz. Apagar é isto mesmo: não se destroem os efeitos, destrói-se, sim, a intenção com que foram causados.
No final do filme Reviver o passado em Brideshead é essa a questão crucificante, com que ele é confrontado: tendo passado, uma por uma, por todas as manifestações de bem-querer, responde no final à pergunta prática quando a saber-se ao que vem e o que pretende quando protesta pelo seu amor. O destino poderia ter querido que eu saisse da sala antes da resposta. Qualquer que ela fosse, ser-me-ia insuportável vê-lo na contigência de chegar ao ponto de ter de responder.

29.11.08

Uma noite de cinema

Não pude estar porque tive de estar onde não contava ter de estar. E depois não cheguei a estar onde era para ter estado. Tudo visto, não pude estar nem onde deveria ter estado, nem onde nem deveria ter chegado a estar.
Em resumo, e para o caso de isto ser difícil, encontramo-nos todos tão perplexos, como no cinema, onde cada um vai ver o seu filme e o acaso do encontro dita, no eco do foyer, a supresa do olha quem. Depois, é só uma sala escura e a fantasia ocupar o lugar da lógica e tudo parecer tão real quanto possível.

24.11.08

O direito à vida

Quando em vez de se viver se lê e se vive a vida através da escrita, há o risco de confundirmos o sucedido com o relatado e os leitores trocarem o ocorrido com o relatado. Neste jogo de espelhos, quanto mais se ficciona mais convicção de verosimilhança se transmite. Depois, há um dia em que o autor exige ao seu público que lhe aceite um desmentido. Impossível. Atingiu então o momento em que se tornou escritor. O direito à sua identidade perdeu-se em cada uma das páginas lidas, em cada um dos livros escritos. Passou a ser o melhor intérprete da sua personagem.

23.11.08

O gritar aflito

Já a ventoinha fazia cuá cuá, num gritar aflito que anunciava o seu fim. Com a morte iminente daquilo que o refrigerava, sobreaquecido, já só funcionando intermitentemente, o velho computador chegava ao fim dos seus dias. O mundo amável que dera a luz, com a generosidade que só as almas puras em si transportam, corria o risco de interromper-se. Foi então que chegou aquele que o iria substituir. Novo, belíssimo, potente, dir-se-ia que, ao desligar-se da rede, a velha máquina sorria. Multiplicara em actos o seu amor pelos outros, a sua ânsia de viver ao dar vida.

21.11.08

A pedra filosofal

Tudo é relativo quando o homem promete. Não prometas nunca! Espera que estejas em condições de a vida te proporcionar a oportunidade. Aguarda por aquele momento em que possas dizer consegui. Não cries expectativas, não faças os olhos dos outros seguirem-te à espera. Sê honesto para com as possibilidades de falhares. Trabalha no interior de ti essa batalha de sentimentos de quem constrói destruindo-se.
No dia em que a realidade enfim surgir, fruto do teu esforço minudente ou do grandioso acaso das circunstâncias, perceberás então.
Guardarás nesse instante dentro de ti a honra de teres honrado. Mas só isso, porque é esse o momento em que o ouro se transforma em ferro. A alquimia da criação é precisamente esta transmutação no absurdo da tua condição fazedora, um Sísifo que esperasse cair ele desta vez e não a pedra.

18.11.08

O improvável leitor

De súbito alguém nos diz algo que nos revela que lê o que escrevemos. Estranho embaraço. E no entanto quem escreve fá-lo para ser lido. Quem escreve fantasia muitas vezes um leitor e dá consigo a escrever como se escrevesse uma carta. Um post é uma carta aberta a um meu caro leitor privado.
Mas há leitores improváveis, que não imaginaríamos que nos pudessem ler. Quando um desses soergue o dedo, por mais discreto que seja, há um sentimento boquiaberto que nos invade a alma atónita. E depois, na vez seguinte, quando o papel em branco nos espera, se nos lembramos dele?
É o que se está a passar agora. Encontrei-o, ao meu improvável leitor, num restaurante, pela hora do almoço. Deu-me a palavra de passe para que eu o identificasse, gabando a minha actualizada fotografia. Respondi-lhe dizendo que estou na idade em que já preciso de retocar a imagem, sobretudo quando pareço mais novo. Tenho-o agora aqui comigo, por cima do meu ombro a ler-me em cada linha. Acho que ele vai gostar de se ler aqui. Boa noite, amigo! Uma noite descansada! Prometo escrever pouco. Encontramo-nos amanhã neste local. A esta hora ou um pouco depois.