31.8.08

Papel de aranha

Há uma fotografia minha, que está no blog mãe, do qual surgem todos os muitos blogs, qual mãe de água da minha escrita no éter, em que dizem ver-me com um ar caduco e triste, e velho e derrotado, zangado com o mundo e de mim farto. Mas que querem, se eu já fiz o exercício mental de me ver com outros olhos e é assim que me revejo sempre?
Há uma fotografia minha que sou eu por mim fotografado. Podia estar mais novo e talvez esteja, mais alegre e rio-me muitas vezes, menos raivoso com a vida, mas eu adoro viver.
Há um fotógrafo da minha pessoa que é mestre no a la minute da existência. Com um caixote empinado num tripé, uma manga preta onde enfio a cabeça qual cegonha de olho intrigado, o balde ao lado para a revelação do negativo, sou o olha o passarinho da minha visão das coisas e da minha própria pessoa nelas ensarilhado. Aos domingos fazemos um instantâneo. Temos um álbum de folhas pretas, com separadores em papel de aranha, cada foto pregada com cantoneiras, como nos tempos em que eu era miúdo e cada imagem de mim era uma forma de todos nos rirmos em Kodak da vida existente e da que imaginávamos existir.

24.8.08

Uma grande alhada

De repente descobre-se que não há cebolas para um refogado que anime as pálidas lulinhas. O problema é que já está azeite na panela e alho a começar a fritar o que poderia ser um refogado. Sem cebola aumenta-se no alho, que há résteas sobejantes. Assim como há quem coma raia alhada, aplique-se às lulinhas a mesma regra, igual princípio. Para iludir, talvez dois cubos de um caldo culinário, daqueles cubos viscosos de cor ambígua, que nunca sei se são de marisco se para marisco.
Como medida de prevenção tempera-se com vinho, não da zurrapa para fins gastronómicos embalada em tetra-pack, sim do vinho de mesa, a fina e decantada essência vinícola, que tudo tinge de um manto tinto pascal e perfuma os ares de uma essência odorífera, preparando a alma do palato para o santo sacrifício da mesa.
Sento-me com veneração, um pão esponjoso a apoiar a prova com adjuvantes sopinhas.
Foi à hora do almoço. Ficou uma dose para um jantar. A refrigeração faz milagres. Ensopadinhas no insólito molho, marcham como lagostas.

13.8.08

A vida vivida

Tal como o senhor Palomar, descobri que a vida não é cronológica mas tem uma lógica decorrente de uma arquitectura própria. Ante o novo que nos surpreende, descobre-se que toda a vida vivida surge agora diferente. Nisso os mortos, coitados deles, estão em desvantagem: o mundo que passou fica irremediavelmente fixo, como numa cena de um filme com a Vanessa Redgrave, imóvel numa interminável pausa, o encontro de duas mulheres de que uma abdicou do homem com quem a outra não casaria sequer, a dor do sacrifício inútil por um amor que é a beleza esplendorosa dos sentimentos, para além das utilidades.