20.6.08

A ordem inversa

Eu deverei ter escrito algures que há livros que começo a ler do fim para o princípio. E talvez o tenha dito com tal veemência que, com um bonito sorriso de amabilidade, me lembraram que o fazia. É claro que eu, por ser muito trapalhão a escrever e os meus textos estarem sempre infestados de gralhas, já comecei a seguir o conselho de lê-los, em revisão, da direita para a esquerda, de modo a não me deixar enfeitiçar pelo sentido do escrito e ter diante dos olhos apenas palavras.
Ora como no Japão tradicional os livros se liam de trás para a frente, da direita para a esquerda e de baixo para cima, um dia destes e verei uns olhos doces de amêndoa, o livro tombado e dos mais esquecido, a meio de terminar o princípio do livro e a meio de começar a primeira linha da página.

18.6.08

Contra factos

Vi um anúncio a uma peça de teatro em que se dizia que «a história é secundária». No fundo, é isto mesmo, na sua simplicidade, a vida de cada um: variada, diversa, com altos e baixos, bons e maus momentos, há um momento em que se conclui que, afinal, a história do que se viveu é secundária. Depois, há quem escreva biografias carregadas de factos, como se essa sucessão de episódios tivesse sido viver.

14.6.08

Uma questão de desajustamento

Há um momento em que uma pessoa se farta das calças de ganga. Não por elas serem nos burgueses uma espécie de travestismo operário; talvez porque se tornam na preguiça mental da roupa ligeira dos dias em que a sociedade não espera ver-nos encasacados.
Há uma idade em que uma pessoa olha para umas calças de sarja e se pergunta «e porque não?».
Há um instante em que nos dizem que terão de acertar bainhas e nesse caso não antes de quarta-feira, porque entre aquels calças novas e o nosso velho corpo há uma questão de ajustamento.
É o instante do desapontamento, a cobra impedida de mudar a própria pele. Dura o tempo em que se pensa nisso, a tristeza a perseguir-nos em cada esquina.
Aconteceu numa loja do Colombo. Comprar roupa nova ajuda a melhorar o espírito, quando possível, naturalmente.

13.6.08

Dias assim

Há dias em que se acorda com a cabeça a estalar de dor, depois de uma noite pessimamente dormida e se vê na rua o sol e não se pode ir passear, e livros a cercar a cama e não há tempo para os ler ou folhear sequer, dias em que nos atormentam as obrigações atrasadas e os deveres que nos esperam, dias de São Remorso pelo que deixámos para trás e que teria sido bom ter vivido, dias de má consciência porque nunca há tempo para visitar sequer a nossa mãe, dias em que os amigos só não se zangam mais porque são tão poucos os amigos quando se vive isolado, dias de filhos entretidos em vez de vividos, dias em que já não se sabe mais onde tirar tempo para um momento de nós, dias em que abre o guichet da vida e ei-la, a longa fila de utentes da nossa pessoa a reclamarem, zangados connosco e consigo desesperados.
Há dias em que o pouco que se tem parece mal, como a história da camisa lavada do pobre, cercado um homem com a eterna lamúria dos que se viciaram a mostrarem ao mundo as chagas das suas insuficiências, dos seus desamparos.
Há dias assim.
Para esses dias, em que ao desejo de morrer sucede a vontade de matar, em que entre o homem e a vida surge a sombra perigosa do já não se aguentar mais, eis a seguinte frase do Vergílio Ferreira, tirada do seu «Diário Inédito», que foi o último livro que consegui ler, só por ser pequeno número de folhas: «Bons deuses! E como justificais vós as trovoadas, se não houve, num dia infeliz de quadra e uva, meia dúzia de raios disponíveis para escavar toda esta malta e in loco
A frase foi escrita na Nazaré em 13 de Setembro de 1948, a pretexto de uns jogos florais da Curia, por sobre a rude materialidade do tempo.

6.6.08

A vida atrasada

E eu que sou tremendamente supersticioso e que, se não consigo escrever à terceira, de modo firme e em perfeita horizontalidade, a primeira linha de uma carta - quando escrevo cartas à mão - e que vejo sinais do destino em pequenos acontecimentos banais, como neste, onde está contida uma mensagem dos deuses a dizerem, amigos e com o meu futuro preocupados: «não escrevas»?
Ora esse eu mesmo vinha, noite fora, a guiar sozinho em estrada deserta e, de súbito, «olha a Lídia Jorge!» numa entrevista na Antena 2 a dizer coisas de que nada retive se não que falava de contos que se transformavam em romances!
Naquele momento, na estação ao lado, a RFM, a estação oficial do Rock in Rio, passavam os Offspring, que são bem melhor trabalhados em estúdio do que ali na crueza de um «ao vivo»: Num apontamento de reportagem, um puto dizia a uma bem disposta entrevistadora «pessoal, não tenham medo deste país que há aqui energia para dar e vender!».
Cá está: acordei cedo e vou começar a trabalhar, cheio de energia: desta vez ainda não é num romance, é a finalizar um pequeno livro, neste computador, não vá a primeira linha sair-me torta e eu começar a manhã logo a desanimar!
Ah! Outra coisa. Estou a escrever sábado de manhã, ainda não são nove mas vou colocar data de ontem, porque foi ontem que eu vivi o que aqui está. Nisto do guardar para amanhã é que, infelizmente, não sou nada supersticioso: tenho a vida toda atrasada e o pessoal a refilar.