30.4.08

Escrita automática

A blogo-esfera é um espaço aberto de diálogo e de exposição, variado como a vida. Por vezes jornal íntimo, outras vezes frio discurso analítico, quantas vezes panfleto, confissão, carta aberta, bilhete críptico com destinatário certo.
Ao longo do tempo fui-me desdobrando em vários blogs, cada um adaptado a uma faceta das preocupações, tudo confluindo aqui numa frase, escolhida por ser chamariz de leitura, com base na ideia de que há leitores para o que vem a seguir.
Tive quem me aconselhasse a reduzir tudo a um blog único e escrever apenas nele. Fazendo-o, liquidaria os espaços que dedico a alguns temas a algumas escritoras. Não o fiz.
Depois é a questão do que se diz. Se não me escondo atrás de um pseudónimo, como tantos, fico exposto a que tudo o que escrevo possa ser tomado com real, tudo o que pretendo seja a expressão da verdade passe por exagero ou ficção.
Finalmente, restam as pessoas que se conhecem, que gostam de nós, que se zangam, que se vão, que nós deixamos.
Neste labirinto de sentimentos e de instantes, algo prossegue, como a serpente rastejante que se enrosca, assassina, no nosso corpo, imperceptível o sibilante e imperceptível surgir: é o escrever, a escrita imparável, obsessiva, automática já.
De súbito damos conta e ela substituiu a própria vida.

27.4.08

Avançando o momento

Hoje disseram-me que eu não parecia ter cinquenta e nove anos, mas sim bastantes mais. Tenho vindo a pensar nisso esta noite quente, talvez porque escrevi um livro sobre o Maquiavel, que morreu aos cinquenta e oito e estou a escrever outro sobre o Ian Fleming, que morreu aos cinquenta e seis.
Talvez, por isso, uma vez mais, vou atrasar a hora deste post: estou a escrevê-lo aos onze minutos do dia 28 de Abril, vou afixá-lo como tendo sido escrito às 23:59 do dia 27.
Ganho doze minutos de avanço sobre a indignidade que é uma pessoa humilhar-se com isto. E iludo-me sobretudo, que é uma forma de se ganhar tempo até encontrar coragem para perguntar no espelho, olhos nos olhos, como foi possível isto ter acontecido.

26.4.08

Noite e dia

Quando uma pessoa vem para um sítio onde há sol e passa o dia à sombra, quando está num lugar de veraneio e passa o dia trancado a trabalhar, quando ao esgotar-se o dia olha e acha que ficou o mesmo que estava antes por fazer sem estar feito, devia tirar férias de si. Desdobrava-se e metia-se na praia a olhar para ontem, enquanto o resto de si ficava em casa à espera que fosse amanhã.

21.4.08

Um livro

Um homem que se afunda num livro tem sobre todos os que o cercam uma vantagem: escolhe o mundo em que quer viver. No mais, é só uma questão de ir virando as folhas até que a Natureza ajude com a sonolência.

20.4.08

Personagens irreais

À sensação de se estar fora, em viagem, e ter saído de um local de onde já se tinha partido, junta-se o desejo preocupado do regresso e na véspera de isso suceder, já se ter chegado. Aqui faz frio e os dias esgotam-se depressa. Além disso, está-se num quarto de hotel e as ruas são túneis de metropolitano. Vivo personagens irreais, como os amores de Vivienne Michel a desaguarem num motel sórdido no Estado de Nova York. Tenho que me entender com tudo isto até ao dia 5 de Maio.

16.4.08

Bem vindo aqui

Encontrei-o na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Sorriu-me e por entre as várias mesas murmurou, para que lhe lesse os lábios: «foi meu professor». A caminho da estante dos dicionários, por causa de palavras em italiano antigo que se podem reconstituir através do latim, fui falar-lhe. Tirara o curso de Direito, mas orientara-se para a estética, trabalhava agora num dissertação sobre o inútil na Arte.
Tentando encontrar um território comum e como se a justificar-me por estar ali, disse-lhe que havia começado «em tempos» uma biografia da Sonia Delaunay. «E há também o marido», respondeu-me. «Sim, o Robert», respondi-lhe.
Na hora de ir, veio apertar-me a mão. Disse-me algo como um «bem vindo aqui», semelhante a um «ainda bem que não se perdeu por lá».
Esta madrugada lá terei mais uma noitada de escritório, a dormir três horas, para conseguir não falhar naquilo em que os outros dependem de mim. Ele segue como se no salva-vidas, a esperança de que seja possível a salvação neste mundo, se não através do justo, pelo menos através do belo.