25.1.08

A ilusão nocturna

Liga-se o Google, escolhe-se uma cãmara da Brisa e fica-se, em tempo real, no lugar onde não estamos. A esta hora de insónia estou a subir a recta para Monsanto, Montes Claros à minha direita, quase ao alto onde se inicia a descida rumo ao rio, mais abaixo corta-se para Sintra, via Queluz.
Há pouco ia um táxi a subir, sabe-se lá com quem, com que destino, a que propósito.
Em Vila Real-Sul, entretanto, está tudo às escuras, o mesmo, compreensivelmente em Sarilhos Grandes. A imagem, na sua negritude, com umas luzes em fundo, lembra Bagdad, na hora dos bombardeamentos, vistos pela CNN.
Antes de desligar, ainda fui à Segunda Circular, ali pelo radar do aeroporto. Duas luzes lúgubres de automóveis nocturnos, eis o que há para ver. Na faixa oposta, uma carrinha de caixa fechada rumo ao norte, transporta no seu bojo a ilusão nocturna de viajar.

12.1.08

O silêncio em permanência

Há um estranho fenómeno, talvez de envelhecimento natural, talvez de degradação patológica, que é um zumbido na cabeça, audível no silêncio e em permanência.
Imagina-se um insecto, em voo interminável pelo espaço oco da memória que se perde, uma sereia de ambulância rompendo a sua aflição pelos labirintos da imaginação.
Faz companhia, quando se irritam, azedos, connosco e nos culpam, irritados, por sermos irritantes.
Ante ele, ficamos a pensar no paradoxo, como se o víssemos, incompreensível, diante dos olhos. Depois lemos, escrevemos sobre o que se lê ou dorme-se para poder ler às escuras e escrever no vazio.
Há um zumbido que faz com que cada um sinta em si a presença de outro, esvaindo-lhe a cabeça.
Dizem que é uma questão de ouvido, ou talvez um problema cardíaco.
Um dia a Natureza tem pena e manda desligar o sinal.

9.1.08

O inesperado momento

Foi hoje, em Vila do Conde. Tinha aproveitado a oportunidade para fotografar a Vila Simultânea, onde viveu a Sonia Delaunay, por causa de um livro que estou a escrever sobre a sua pessoa. De passagem, a caminho do Arquivo Municipal, na mira de encontrar algum resto documental, cruzei-me com a magnífica Biblioteca Municipal. Um instinto fez-me estacionar.
Cheia de gente nova, alguma a surfar na Net, outra a estudar, uns a ler, um local tranquilo, a esperança de que me socorresse.
Trouxeram-me, requisitado, o catálogo que a Câmara Municipal editara, numa exposição alusiva.
Foi então que dei por por ele. Estava a meu lado, como se invisível. Sentira-me o embaraço de investigador à procura, qual Polegarzinho, de reconstituir o percurso dos miolinhos de pão de uma história. Reformado, vestido desportivamente, a ler um catálogo sobre Amsterdam.
Identificou-se, «embarcadiço», vivera em Lisboa, «passo os dias aqui». Ante o meu sim distraído, os olhos cravados no que eu lia, ciciou-me: «A criada da Sonia, que foi presa também, era da minha família». «A Beatriz?», perguntei, como se o mais natural encontro do Mundo tivesse acontecido. «Sim, é essa aí na folha que o senhor está a ler!».
Aconteceu tudo em 1916. Em 2008 o destino colocou-nos ali, no improvável lugar, no inesperado momento, ele, eu, a Sónia, a Beatriz e o sonho de um dia magnífico a acontecer.
Cheguei a Lisboa exausto de coincidências.