19.8.07

Bons propósitos

Entrei em obras e saí delas. Caliça, cheiro a tintas, promessas de prazos, móveis fora do lugar, livros carregados daqui para ali.
Finalmente acabaram, e com o fim das obras veio agora o reconstruir do meu mundo em gavetas, a tentativa de ordenar o caos, de dar sentido à desarrumação em que se tornou a vida.
Por causa da racionalidade do gesto, esfalfo-me na irracionalidade do esforço, arcando com sacos de livros, do escritório para casa, desta para aquele, como se o uno pudesse ser dual, o divisor de dois pudesse ser tantos quantos os que há.
Animal de carga, eis-me hoje, cheio de bons propósitos e melhores intenções, ao serviço do meu ser leitor.

17.8.07

Antigamente

Antigamente, quando foi tempo em que eu não dizia antigamente, a chegada do vento marcava a despedida do Verão. Os banheiros recolhiam os toldos de praia, as mães recolhiam as crianças renitentes, regressadas a casa de má vontade, os lábios roxos de frio, a hora tardia. Era o tempo da nostalgia dos amores de ocasião, o regresso preguiçoso aos livros, as noites mal dormidas acossadas pelo despontar do corpo, os adultos a conversarem na varanda, embrulhados em cobertores, a lua como testemunha. Hoje cheguei a Lisboa, a cidade revirada de vento, anunciando a chegada do Inverno, eu a dizer a palavra antigamente.

14.8.07

A imensidão do ausente

Há no evoluir dos seres a fase do recolhimento, em que as almas lentamente se concentram no âmago de cada ser, tal como os corpos mirram, secando com o envelhecer. Tudo nasce pequeno e se vai reduzindo à sua insignificância de semente primordial.
A vida como se soubesse isso, assim age.
Os outros começam por estranhar-nos os silêncios, quando se apercebem que não falamos, as ausências quando lhes ocorre olharem para o lado. Um dia calha perguntarem porquê, sem darem conta que não se lhes respondeu. Continuam tagarelando com a vida, renovando esse debicar em superficialidades aparentes, o mordiscar em aparências fugazes.
Nota-se isso nas esplanadas familiares, os olhos dos velhos perdidos na imensidão do outro lado do mar.

11.8.07

O tempo sobejante

Lembrando, ao citá-la, uma frase de um conto do meu livro «Contos do Desaforo», a Susana, teve a gentileza de o associar à imagem forte de um mulher que espera, as costas voltadas a tudo, a indiferença de um não olhar. Bem-haja!

7.8.07

Uma «Romanza»

Ontem foi dia de alegria. O meu editor da Presença disse-me que está contente com o livro de contos que me editou, os «Contos do Desaforo». Eu de vez em quando dou uma espreitadela, tímida, a algo do que nele escrevi, com receio de me envergonhar ao reler. O meu amigo sábio disse-me um dia que a obra que fica é aquela que eu não renegar após uns anos de edição. Oxalá os anos passem depressa.
Agora falam-me na ideia de um romance. Ontem, antes de apanhar o comboio, em Entrecampos, vi, na livraria que ali há, tantos romances que me assustei! Ainda por cima, eu inculto me confesso, não li nenhum dos que vi. Imagine-se que no meio daquelas resmas de papel está um que seja rigorosamente igual ao que eu escrever? Não é medo do plágio, é o receio da vulgaridade que me refreia! Ao meu lado, na carruagem, uma rapariga lia, concentrada, um livro sobre mítica e mística, na forma de uma gigantesca narrativa com um halo arturiano e um odor a faunos pelos bosques; enquanto isso trincava maçãs, mordiscando-as, provocadora. Com leitoras assim até um homem se arrisca a romancista! A cada página, dava ganas de a folhear só com o olhar.

3.8.07

Momentos inesperados

Há momentos inesperados na vida de um ser humano. Sabem-nos os que amanheceram com a crença inesperada numa ideia, a fé num ideal. Conhecem-nos quantos esgotaram a capacidade nocturna de se conformarem com uma mentira fria, a impossibilidade de ignorarem a lua quente de uma ilusão.
Toda esta grandeza ocorre na pequenez do ser individual, como a infinitude do cosmos num átomo de vida, o todo em tudo, o indizível no já dito.
Nesse dia em que o monje mortificado recolhe à sua cela, ou a fêmea em cio se oferece à cama, a vida floresce no seu renovar-se diferenciado, como a sequência das estações ou a maré fecunda no ventre de cada mãe.
Há momentos inesperados em que nos cruzamos com a glória do que somos e com a vergonha do que temos. Depois, fazemos por esquecer, a Natureza amiga a lançar-nos o socorro da senilidade para que descansemos, enfim, em paz.