25.7.07

O fiel entendimento de si

Lentamente vamos encerrando a sociabilidade indiferente, como quem deixa de levar na bagagem a muda de roupa que jamais mudará. Depois, vamos libertando os intímos da obsessiva presença de nós, devolvendo-lhes a cómoda ausência da nossa memória, como quem meticulosamente rasga amarelecidos retratos de um tempo em que se era feliz. Ficamos, enfim, reduzidos aos que herdaram a nossa presença, como quem se dá conta dos móveis que tem em casa por um dia os ter escolhido. Em noites de insónia nota-se mais o que nos falta, por não se conseguir sequer sonhar. Restam os dias de trabalho, em que o espírito se narcotiza na alucinação do esgotamento. Chega-se a um momento e está-se só, o firmamento por testemunha, a vigília interminável. Há quem escreva para vir dizê-lo, há quem, mesmo escrito, jamais o consiga entender.

21.7.07

O evanescente conceito do amor

Finalmente eis-me a acordar tarde numa manhã de sábado, sem a sensação de pecado, e a voltar à leitura do Manuel Laranjeira, ao seu «Diário Íntimo». Laranjeira, médico em Espinho, manteve uma relação íntima com um singela rapariga de superficial instrução e profundos sentimentos, chamada Augusta, a quem dedicou a sua torturada alma e os seus «nervos infelizes».
Tudo isto sucedeu ante o escândalo da burguesa sociedade local e o olho invejoso das preteridas outras, muitas casadas com conveniências públicas e esfaimadas por oportunidades secretas.
Foi ao voltar uma folha desse livro antigo, impresso em 1957 pela extinta Portugália, que me cruzo com um enunciado do evanescente conceito que é o amor.
Foi no dia 31 de Julho de 1908, uma sexta-feira. Falando de banalidades, brincando às escondidas o jogo do bem-me-quer-mal-me-quer que é o peguilhar infantil do querer adulto, ele diz-lhe e anota o dito: «Tu já não és tu, és uma parte de mim mesmo».
Talvez haja tratados sobre o que é amar, mas não uma frase assim que simbolize o estar enamorado, mesmo ante a «imperfeição das almas».

15.7.07

A silhueta

Primeiro, era o modo de vestir e o vestido, a maneira de sorrir e o sorriso. Depois era o rosto por debaixo do sorriso, a pele por detrás do vestido. Enfim, as ideias que a cabeça albergasse, os desejos que o corpo exigisse. Estava na janela de um café, como se na amurada de um navio, à balaustrada de uma varanda. Voltei ao princípio, agora pela ordem inversa, cabeça primeiro, rosto depois, sorriso, enfim. A cada uma das coisas, juntava outra. Momentos depois, entre sorrisos e desejos, mais um café, se faz favor também se usa, perguntava-me o que é a essência e a circunstância, o substantivo e o qualificativo. A criatura, entretanto, soergueu-se, como se soerguem as demais criaturas. Um sentimento de vulgaridade envolveu-lhe a silhueta. Ao cruzar-se com a porta voltou para trás. Por momentos o mundo ficou em suspenso. Ao tique taque do meu relógio interior, recomecei, do modo de vestir ao despido, do modo de sorrir à gargalhada estridente. Desventrado no meu ridículo, sentia-me como se diante do absurdo. Era, porém, o meu dia de sorte. Nada daquilo tinha a ver comigo. Regressara afinal por causa dos cigarros, eu que não os fumo. Esqueci-me deles, ainda me disse, como se em justificação para ter voltado, não fosse eu ter ilusões.

7.7.07

O real e o ilusório

Hoje de manhã olhei para ele. Ali estava, paciente, à minha espera. Tinha-o comprado depois de no ano passado ter ido a São Petersburgo. Confessei então a sem-vergonha de nunca ter lido o Dostoiévski. Dedicado a redimir o erro, livro a livro fui enchendo com a sua literatura a estante e o chão circundante, as suas obras pesadas, histórias de homens densos, de figuras desesperadas, onde a felicidade é uma forma tristonha de estar em paz.
Fiódor Dostoiévski escreveu os «Cadernos do Subterrâneo» em 1864. Esta manhã entendi o que é «o direito de desejar para si até o extremamente estúpido». Acordar ums pessoa, olhar-se ao espelho e dedicar o dia à procura de tornar-se contente, evitando que a noite chegue e com ela a constatação de que não foi possível. Logo talvez vá ao cinema. Lá é sempre noite e tudo, mesmo o real, é ilusório.