26.6.06

A velha caixa de costura

Dispersa e pelo mundo espalhada, difusa e por alguns repartida, sento-me à mesa des costura com o propósito doméstico de me remendar. São os velhos trapos dos sonhos antigos, vestidos de boneca, ridículos porque inocentes, as rendinhas vaporosas dos primeiros atrevimentos, a blusa rasgada daquele dia de lágrimas violentas. Reunindo-me no que me sobeja, tento encontrar, cerzindo-me nos rasgões da alma dilacerada, ponteando-me nos buracos da traça monótona no que armazenei. Olhando-me assim, desse teu modo penetrante e profundo, sorris-me, quase imperceptível. Boneca de trapos num sótão esquecia, aceno-te o desejo, beijo-te com sofreguidão os teus anseios.

9.6.06

Ausência

O ser fictício, como tem andado prisioneiro do mundo real, o evidente e o aparente, não tem aparecido por cá. Ectoplasma de si próprio, ele é no espiritismo, a voz do ausente. Assim lhe saibam o nome, acorrerá à chamada.

5.6.06

O mundo possível

Compreenda-se a diferença entre o evidente e o aparente. Vá-se tão longe quanto não acreditar no que está, e sobretudo, nunca confundi-lo com o que é. Dê-se ao ser a oportunidade amável da conjugação condicional do seria, ou a expectativa optimista do futuro serei. Vivendo, assim, sem fingimento nem ilusões, o mundo parece menos real, mas é seguramente mais possível.

3.6.06

A indiferença no ouvir

Há uma forma, um meio, um expediente, para se sobreviver ao que se não quer, ao que se não gosta, ao que se nos torna indejesável: o silêncio. Trata-se, no fundo, de uma anulação do eu. Finge-se o homem parte do que o cerca, indiferenciando-se. Ante o mutismo, tudo se cansa. Há apenas um perigo, um inimigo que o mudo não vence: o surdo. Não é que não dê conta de não ter resposta, é por poder fazer-se indiferente ao que se lhe diz.