29.4.06

Morte no asfalto

Um automóvel trucidara-lhe as costelas, esmagara-lhe as pernas, tornara-a naquela massa sanguinolenta, repugnante só de olhar. A esvair-se pelo asfalto, em guinadas violentas, o terror da morte estampado em toda a cena, tentava alcançar a valeta, para ali ficar. Tresloucadas de indiferença, velozes por divertimento, rápidas por conveniência, outras viaturas, passavam e trespassavam, o perigo de um novo embate numa dança louca e homicida, a comoção a doer no coração dos poucos que reparávamos. Foi então, que vinda dos céus, num voo picado, outra pomba, se precipitou sobre ela, e à bicada, raivosa de tão misericordiosa, pôs termo a tanto sofrimento. Se há Deus, era o Espírito Santo. Se há amor, era uma forma assassina de amar. Morreu, enfim, sozinha, como convém a quem morre na miséria total, um dejecto de ser, um resto do que já foi.

23.4.06

O nascer de um homem

Eu sei que estava nesse Verão, em exames, com um morto para enterrar. No velório, ali estivemos, quais dois palermas, o menino e sua mãe.Nessa noite, inchados os pés de tanta espera, ansiando, enfim a paz de ter-se feito o funeral, nasceu um homem. Entre círios e lágrimas contidas.

16.4.06

Vindo das hortas

José-Augusto França escreveu agora um «romance dos anos 20», que é uma forma fictícia de descrever uma vida que poderia ter sido vivida por aquela geração: Almada, Pessoa, Santa Ritta, Pacheko, Sousa-Cardozo, outros. Consegui começar a sua leitura este domingo de Páscoa, pela tarde, chegado a Lisboa, vindo das hortas do meu veraneio. Foi no Centro Cultural de Belém enovelado com a toada irritante de um arquitecto a explicar, desenvolto, onde é que no seu ozalide estavam as duas casas de banho da excelente casa dos consigo ali reunidos atónitos clientes. Almada regressava ferroviariamente a Lisboa, vindo de Paris. «Sonhara viagens de transiberiano do Rossio à Campanhã, pelo litoral do país, com tudo o que vira, no quotidiano do Hotel Silva, por cima da farmácia». Eu viajava com ele, ao lado da senhora volumosa e o senhor seu marido atencioso.

12.4.06

Quarteto de câmara

Éramos quatro à mesa, embora a reserva tivesse sido feita para cinco. Imaginei que houvessem contado com o meu desdobramento de personalidade e houvesse para nós os dois mais um talher. A ter de manter uma conversa de salão falei sobre aquele outro que não conheciam e que é sempre o mais agradável de se conhecer. Pela hora do café retornei ao que ali estava, para alívio de todos e para que pudessemos sair reconfortados com o plausível e compatíveis com a realidade.

9.4.06

Amátia perféssia

Trouxe-o para casa, o primeiro disco das palavras ditas por Mário Viegas. E nele o poema «Amátia» de Jorge de Sena e nele as palavras que não existem, o português fingido do ser imaginado, da vida fictícia, do mundo irreal: «timbórica, morfia, ó persefessa, meláina, andrófona, repitimbída, ó basilissa, ó scótia, masturdília, amata cíprea, calipígea, tressa». Vivo-o impossivelmente, sinto-o de modo abstracto e evanescente, nele me dissolvo, com ele me dou sumiço. Ao findar o dia reina em mim o festejo de ter deixado de ser. Resta de mim a ideia, uma vaga ideia, a amnésia de mim, a lembrança do outro.

7.4.06

O tampo da realidade

Há pouco mais de um ano deixei no blog «A Revolta das Palavras» que entretanto apaguei [e de que este é uma segunda série], esta prosa, que agora ali fui buscar, como os cães que enterram ossos que hão-de alimentá-los em momentos de fome: «Atirei-me ontem a ler о Ruben A., e dele, as «Páginas» e destas, о volume II, por me parecer que me daria embalagem para ler о resto, que ainda é muito. Ruben reconstruiu a gramática portuguesa e criou uma maneira esplendorosa de comunicar sentimentos. 0 livro é um carrossel estonteante de sensações. Prenuncia-se ali о estrondo final da sua obra póstuma, о «Kaos». Nalgumas coisas, о tempo ultrapassou-o. Ele achava, por exemplo, que «Portugal é um país muito sério» onde «dificilmente um professor universitário aceita cocktails com mulheres pintadas» e nisso, já lá vai esse tempo, se é que о houve, em que isso seria assim. Mas uma continua actual, a sua arte de dizer. Aquela da «vingança do vermelho [que] fazia cócegas aos mais verdes», a propósito do chefe da estação ferroviária onde о comboio é о eterno retardatário, emparelha com tantas outras que, quem tiver о habito de sublinhar a lápis о que lê, que se muna de um bom apára-lápis, que vai ter muito que afiar». Viajei com Ruben, pelo corta-mato da vida. Como se na «caminheta aos soluços de subida e loucuras de descida», cruzei-me com as «mulheres com capoeiras a cabeça» e conclui também que «os homens tão preocupados pela quilometragem transformaram-se em pulgas dareia» [sic dareia]. A sua literatura é a do absurdo por ser real. Continuo a ler e tal como ele «sentado no tampo da realidade para pensar». Não e que seja um excelente local, mas pode ser um excelente momento».

4.4.06

O modo desabrido

«Só não percebo, afinal, é quem é o ser fictício», perguntava-me ela, ainda perplexa com o porquê deste sítio. «Sou eu», retorqui, como se a coisa mais evidente do mundo fosse isso mesmo, o de eu não ser o que pareço nem parecer aquilo que sou, como se nota, aliás, neste modo desabrido de responder, naturalmente.

1.4.06

Raivoso sem quê

É mais um daqueles posts de um blog que, raivoso sem quê, apaguei sem cópia e que a gentileza de amigos permitiu se não perdessem: «Hoje acordei e vim aqui dizer que não aconteceu nada, não pensei nada, não senti nada mas que, no mais, tenho projectos grandiosos de obras, que me dão para o resto da vida. Acho que já é um bom começo, este de partir do nada. Nesse aspecto, eu e o meu armário de gavetas estamos iguais: vazios e à espera. A um escultor que numa praça pública cinzelava uma magnífica estátua perguntou um passante, olhando atónito para o bloco rude de pedra de onde ela emergia, como é que ele sabia que aquilo estava ali dentro. Assim estou eu, com a diferença que sou, numa só pessoa, a emergente estátua, o seu autor e o apatetado admirador». Obrigado a quem mo recordou, pois há dias em que é, tal qual assim, mais o senhor grandiosamente coisa nenhuma.