27.2.06

A máxima extensão

Escreveu Alberto Caeiro através de Fernando Pessoa que «quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe porque ama, nem o que é amar...». O dito contém em si, de negação em negação, a máxima extensão do que é possível afirmar-se sobre um sentimento: o negativamente não ter ele nada a vêr com o saber, mas positivamente e apenas com o sentir.

26.2.06

A ilusão do progresso

Cientifica ou filosoficamente o tempo é o fluir da potência ao acto. É por isso que o inalterado parece fora do tempo. O homem para inovar precisa de um instrumento fundamental, a tradição. Tudo visto, ao criar, retroage, julgando-se a progredir.

12.2.06

A dor alheia

Uma vida ficcionada não é a que os outros julgam ser a nossa, é que a vivemos como se fosse a própria. O poeta escreve como se lhe doesse, o leitor sente sua a dor alheia. E, no entanto, a tristeza de um entardecer só existe pela melancolia de quem o vê, como a alegria de uma manhã só acontece, havendo alguém a quem contá-lo. A literatura é, pois, esta forma de, pelo que se conta, dizer. Esgotadas todas as palavras, restam ainda os pungentes silêncios. Morto o último dos leitores, renasce o primeiro dos escritores.

11.2.06

O virar de uma folha

E, no entanto, reflectido no que daqui vejo, não me reconheço na animosa criatura que me permitiu chegar até aqui. Houve, por certo, nalguma energia vital anterior, o que alimentou o vivido e o sofrido, o ter saído de casa sem vontade, o ter partilhado sujos momentos com quem ninguém o devia. Tudo isso, porém, como uma hera fincada num muro, esboroando-lhe o reboco e carcomendo-lhe a cor, é uma memória difusa, como aqueles álbuns de fotografias dos mortos, que nos gangrenam as estantes e escondemos em gavetas. Um dia, a pedido ou a propósito, mostramo-los, mortos todos definitivamente, abatidos ao efectivo da vida, inúteis até para o que temos para contar. Para alguém, naquele tempo, aqueles corpos e aquelas almas, foram um motivo de muito ou um pretexto de mais. Hoje, amarelecida a imagem do que deles sobeja, são o virar preguiçoso de uma folha, um nada numa tarde maçadora de domingo, visitas em casa, pela hora do chá.

A maravilha espectacular

Eis-me a monotonia em forma humana, a ausência de interesse em ver, a abulia no não querer saber, o haver poucos que se interessem e nenhuns que retenham. Da janela deste escritório nocturno faço observatório para o mundo, os olhos a luneta que os amplifica, o cérebro o caleidoscópico que lhe dá a maravilha espectacular que não tem. Esta noite, sem razão, nenhum motivo e total falta de explicação, vim aqui a este caderno de notas iniciar como se num diário, a cantata de um vida por viver. Estou só, e isso traz-me a intimidade de um companhia que desejo. Vindos de longe, na aceleração tresloucada de quem sente o tempo a fugir-lhe na forma de estrada, esvoacejam temíveis automóveis, viaturas de clasura do interminável dever taxista ou do prazer instantâneo na forma disponível de um decotado descapotável. São luzes reflectidas de um chuva que já se foi, a madrugada de um sábado que aí vem. Estivesse eu bêbado de mim, embriagado na ilusão de um futuro, ressacado da frustração de um passado. Mas não, hoje, a partir desta janela, há só presente: a minha presença real e a realidade fingida do que do que pareço ser eu. É um mundo fictício, o ambulante do cortejo basbaque dos que o vêem, o sedentário eu, o desta imobilidade de ser visto.